A corrupção não pode ser normalizada

José Sócrates não foi tramado por um juiz com mais ou menos agenda política, nem por uma escolha feita de forma alegadamente enviesada. Segundo me pude informar em fonte próxima do Ministério Público (MP), à data da atribuição do caso a escolha dos juízes era feita de forma manual em todos os processos e o procedimento não foi um exclusivo para o caso Marquês. De resto, isso mesmo clarificou o Conselho Superior de Magistratura, que na entrevista da passada quarta-feira, dia 14 de Abril, na TVI, José Sócrates não se coibiu de enlamear. O juiz Carlos Alexandre até pode ter uma agenda política, mas a sua escolha não teve um procedimento diferente de todos os outros processos que foram atribuídos à data e durante o longo período que durou a falha técnica na distribuição digital e onde a distribuição manual foi a regra, e não consta que haja uma catadupa de reclamações relativas a esse mecanismo de distribuição.

José Sócrates também não foi tramado por um Ministério Público mais ou menos competente, por falta de provas ou por provas forjadas como insinuam quem faz paralelos com o caso Lula da Silva, nem mesmo por uma investigação excessiva do ponto de vista temporal. De resto, o juiz Ivo Rosa conclui sobre várias das provas organizadas pelo Ministério Público, sendo que muitas delas não produzem, na sua opinião, motivo de julgamento, apenas porque o prazo de prescrição do procedimento criminal pelos crimes que entendeu imputar já se encontrava, na sua leitura, decorrido. No mesmo sentido, basta uma análise ao tempo médio das investigações do MP para concluir, ainda mais num caso tão complexo como este, que sete anos é um prazo mais que razoável para levar a cabo esta investigação.

José Sócrates também não foi tramado por uma cabala política dirigida contra o PS, posto que muitos dos poderosos que estavam envolvidos nos seus alegados esquemas de corrupção estão longe de ser do partido, e caso o Tribunal da Relação (TR) entenda recuperar alguns dos casos que o juiz Ivo Rosa não deu aval para julgamento, veremos que há ao barulho figuras de todos os quadrantes dos negócios comuns do bloco central.

José Sócrates, tenhamos claro, foi tramado apenas por si próprio. Pelo seu gosto por aquilo que ele gosta, pelo envio sistemático de fotocópias em numerário que não conseguiu provar serem fruto do seu trabalho ou património, e pela sua soberba, que o levou a achar, veremos se com razão, que estaria indefinidamente acima do escrutínio público e impunemente acima das leis.

Mas recapitulemos a trama no seu essencial:

Ao longo dos últimos anos José Sócrates acumulou dezenas de mentiras testemunhadas por todos nós, não raras vezes com provas ilustradas a cores e a viva voz. Antes de ser chefe de governo, depois de ser chefe de governo e enquanto foi chefe de governo. Como homem, como cidadão, como engenheiro e como político. Com as escutas que todos ouvimos. Com as fotografias que foram publicadas. Com a vida que viveu acima das suas e das nossas possibilidades. Com as provas que o MP reuniu e que só não são úteis em julgamento porque a prescrição dos crimes terá, caso prevaleça a leitura do juiz Ivo Rosa, um prazo ridículo, definido, pasme-se, pelo legislador que é, em matéria de tráfico de influências e de corrupção, um dos potenciais interessados em que nada mude de facto nesta matéria.

Vejamos com atenção o que se passa relativamente às duas leituras em cima da mesa no que diz respeito à prescrição. Segundo o entendimento do juiz Ivo Rosa, entende-se que a data a considerar é o primeiro acto do acordo corruptivo (para crime de corrupção que, na óptica do juiz Ivo Rosa, não pressupõe a prática de qualquer acto, mas apenas criar um “clima de permeabilidade” junto do decisor público), ao passo que na leitura do MP a prática de crimes de corrupção para a prática de acto ilícito, seja ele o último acto de pagamento, seja o acto do corruptor passivo, distinguindo entre consumação formal e consumação material do crime de corrupção, no caso de corrupções praticadas por uma sucessão de actos. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem jurisprudência sobre a matéria, como se pode ler no Acordão de 2018, que vai no sentido de assumir o último acto de ilicitude, contando a partir daí o tempo da prescrição.

Em sentido contrário há outro Acórdão de 2019, assinado pelo Juiz Cláudio Monteiro, juiz que esteve de raspão no Tribunal Constitucional (TC) e que por razões que se desconhecem e que não foram explicadas pediu para sair para ir para o Supremo Tribunal Administrativo, e vai no sentido de considerar o primeiro acto de ilicitude. Esta parece-me, de todas, a celeuma mais fácil de concluir embora a mais difícil de entender, posto que em matéria de crimes cuja execução se protela no tempo, e do tempo depende para se consumar, considerar o primeiro acto é uma forma absurda de amnistiar a corrupção. Dando por exagero polémico o exemplo do tráfico, bastaria a qualquer traficante registar em notário a data da primeira venda no inicio da actividade, para ter garantida a prescrição quando viesse a ser apanhado. Sobre o assunto, vale a pena ler o que escreve Nuno Brandão, Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se justifica a justiça das razões do Acórdão do STJ e não do Acórdão do TC.

Posto que a próxima instância a decidir será o TR, é provável que a jurisprudência do STJ não seja ignorada, e parte importante dos crimes que na leitura do juiz Ivo Rosa e da defesa de José Sócrates já prescreveram, venham a ser recuperados e considerados válidos para mais julgamentos do que os três de branqueamento de capitais e os três de falsificação de documentos que sobreviveram dos mais de cem crimes investigados pela acusação.

Tenhamos algum respeito pela memória. José Sócrates foi exposto em dezenas de investigações jornalísticas sérias, não apenas pelos meios sensacionalistas, que deixaram exposta a teia de influências em que sempre se moveu o “mercadejar” da sua posição. Seja por patos bravos seja pelos donos disto tudo, que foram ilibados provisoriamente pelo juiz Ivo Rosa, uma vez mais, não é demais recordar, pelo expediente da prescrição.

José Sócrates foi tudo o que agora sabemos que sempre foi, mas na improbabilidade de ser julgado, alguns agentes do sistema de justiça, jornalistas e a generalidade da população, trataram de lhe aplicar a sentença. Não é, evidentemente, o melhor caminho para que se faça justiça.

Erros foram erros e não os pretendo escamotear. Foi um erro ter prendido preventivamente José Sócrates, foi um erro o tempo que essa medida durou, foi um erro terem sido públicos os caminhos da investigação e foi um erro a agregação de demasiados casos num só, tornando um mega-processo que já era esdrúxulo num praticamente impossível de resolver em tempo útil. De qualquer maneira, não deixa de ser tão profético como paradoxal que seja parte desses erros os responsáveis pelas únicas penas que provavelmente veremos no final de toda esta história.

Questiúnculas jurídicas à parte importa ver igualmente as implicações políticas.

José Sócrates não é recuperável politicamente porque politicamente José Sócrates não vale mais do que o seu voto. Juridicamente José Sócrates poderá nunca vir a ser condenado, mas não se livrou de ver o juiz que descartou de ir a julgamento todos os poderosos e o próprio pelos crimes de corrupção, pregar o último prego no caixão onde jaz a sua credibilidade, ao deixar claro que “mercadejou” a sua posição e que tirou proveitos indevidos dos cargos que ocupou.

António Costa, táctico como poucos, terá pedido a Fernando Medina para provocar José Sócrates e este deu a resposta pavloviana que António Costa pretendia. Assim, em horário nobre, José Sócrates fez o favor ao PS de dizer que o PS está nas mãos de uma direcção “traidora” e que Fenando Medina teve um comportamento “cretino”, aprofundando a demarcação que vai continuar a esboçar sempre que lhe seja possível.

Perdeu o respeito de todos, mesmo de muitos que lhe eram próximos. Perdeu até, provavelmente, a possibilidade de gozar todo o dinheiro com que os amigos e os amigos dos amigos o agraciaram a troco, claro, de favor nenhum. Até que o TR delibere, José Sócrates tem uma nova oportunidade de aceder aos bens que até aqui estavam sob arresto, mas não deixará de renovar as suspeitas sobre a origem dos fundos com que nunca deixou de levar uma vida muito acima do seu património e do seu rendimento.

De toda esta novela rocambolesca devemos retirar algumas lições, sem qualquer contemporização por ter havido outros casos igualmente graves e igualmente impunes. Não podemos ter alguns suspeitos de corrupção mais suspeitos que outros, em função do quadrante político das nossas antipatias. Ou o sistema de justiça muda o que tem que mudar para que os réus sejam julgados no devido lugar ou a justiça vai continuar a ser feita na praça pública, gostemos mais ou menos dos julgados, sejam mais ou menos importantes na cadeia de poder. Os tempos de prescrição têm que ser prolongados e têm que ter uma leitura unificada independentemente do juiz de turno. O enriquecimento ilícito tem que ser criminalizado. São medidas simples, que só não avançam, na minha opinião, porque são os principais suspeitos a legislar.

Caso tudo continue como está continuaremos com dificuldades em julgar e condenar os corrompidos, ainda que seja possível, mas continuará a ser impossível julgar e condenar os corruptores, que continuarão a monte e a salvo de responder perante a justiça, protegidos por um manto sagrado que na prática legaliza a corrupção.

Comments

  1. Júlio Rolo Santos says:

    Não sei no que é que vai dar o final do processo Marquês, o que sei, é que José Sócrates tem a sorte de viver num país de corruptos onde nada acontece. José Sócrates pode ser um deles, mas aonde estão os outros? Temo que tenhamos de nos preparar para pagarmos chorudas indemnizações pelos “danos” causados.

    • Renato Teixeira says:

      Hoje por hoje estão todos a rir na mesma arquibancada.

  2. Rui Naldinho says:

    Que José Sócrates é um corrupto, já todos nós sabemos. Até os seus ex correligionários de partido, sabem isso. A maioria dos dirigentes socialistas já interiorizaram a desonestidade material e intelectual de José Sócrates. Sobre esse assunto, tudo o que se escreva é repetirmo-nos, sem que nada se resolva.
    Temos é que colocar o dedo na ferida. Temos é de perceber como interagem no tabuleiro do poder, num país periférico, pobre, com poucos recursos naturais, com níveis de iliteracia elevado, as forças sociais e políticas. Nomeadamente o da estratificação social e económica dos vários intervenientes políticos.
    Eu já aqui escrevi e repito-o. Tanto é ilícito fazer o que Sócrates fez, como criar condições de vantagem numa privatização para um determinado grupo económico, e anos mais tarde vir a integrar a administração desse grupo.
    Não é bem igual, mas ainda assim é uma forma de corrupção.
    Assisti nas últimas décadas a uma série de privatizações, das chamadas empresas de regime, com privilégios de renda fixa, livres da concorrência de outros pares, saneadas financeiramente pelo Estado, à custa de todos nós, a maioria delas já a dar lucros, e os ministros ou secretários de estado que tutelavam essas privatizações, acabaram invariavelmente ligados a elas, directa ou indirectamente, anos depois. Foi assim com a LusoPonte, EDP, BRISA, GALP, CTT, PT, TAP, …
    Sem entrar por outros caminhos, já o que acabei de enunciar me parece obsceno.

    As raízes sociais da família socialista assentam nas classes médias. Uma parte dela na burocracia e nas profissões liberais, com um nível intelectual e académico universitário, outra versão, numa classe média baixa, proletária, urbana, e por fim, numa ruralidade assente em pequenos agricultores.
    O PSD assenta as suas raízes na média burguesia provinciana, que se foi extinguindo ao longo do processo de globalização, e nas elites económicas deste país. Da alta burguesia às profissões liberais, ou o tecido empresarial.
    Com naturalidade o PSD é o receptor das preferências endogamicas que o grande capital gera. É o seu espaço social e político natural.
    É neste quadro de luta pelo poder de decidir, de enriquecer com a chancela do Estado, de criar vantagens económicas pessoais e familiares, que tudo isto se passa.
    Portugal vive do oportunismo de uns quantos, pago com a pobreza de uma imensa maioria.
    Sim, somos um país subdesenvolvido. Mas já o éramos antes de José Sócrates cá chegar.
    Infelizmente está é a nossa condição. Mas não é de hoje. Faz parte da nossa História.

    • Renato Teixeira says:

      A questão é, então, por tudo o que diz, e bem, fazer mudar os mecanismos de amnistia com que os corruptos, e sobretudo os corruptores, têm sistematicamente ficado à margem da lei.

      • Rui Naldinho says:

        Entre outras coisas, sim. Essa é uma delas, talvez a mais premente, mas não a única.
        É necessário criar também, por exemplo, uma “barreira sanitária” em defesa da salubridade ética da República. Contra alguma obscenidade que o próprio capitalismo gera se não for regulado.
        Criar uma barreira sanitária” entre a nomeação do cargo público ou de natureza política, e as organizações económicas do sector privado ou até social, nacionais ou internacionais. Essa “barreira sanitária” deve incluir de forma clara e precisa, a impossibilidade de alguém poder tutelar uma pasta ministerial, uma secretaria de Estado, ou presidir a um órgão mesmo que colegial, com competência de avaliação ou fiscalização, com carácter jurídico, concorrencial ou financeiro, por exemplo, uma Alta Autoridade, cuja mesma interfira antes ou depois da sua passagem pela política ou cargo público, com os interesses sociais e económicos de determinado grupo. Aí deve entrar claramente não só os interesses do próprio, como as relações familiares próximas. Falo de especificamente de descendentes e ascendentes directos, ou colaterais em primeiro grau. Um pai ou uma mãe com funções ministeriais não deve poder decidir sobre as candidaturas a financiamentos comunitários, por exemplo, de uma empresa cujos filhos ou irmãos sejam proprietários, em todo ou em parte.
        Quando a vida política tiver um conjunto de regras inibitórias do tráfico de influências, do compadrio ou do favorecimento familiar, sabendo nós que mesmo assim nunca se conseguirá controlar tudo, então ficaremos francamente melhor.
        Se for necessário alterar a Constituição façam-no. Mas não se escudem no direito ao bom nome, na liberdade individual, e principalmente naquela velha treta já muito gasta, mas redondamente falsa, que assim estamos a inviabilizar a vinda dos melhores para a política.
        O que a política portuguesa sempre teve foram lobistas à fartura, e nunca os melhores.

        • Rui Naldinho says:

          Quando no meu texto falo também no sector social, para além do sector económico propriamente dito, não o faço por acaso.
          O caso ocorrido há três anos na instituição “Raríssimas”, foi um verdadeiro atentado ao bom nome das IPSS, muitas delas geridas com uma certa dose de voluntariado. Demonstra bem que neste país nada passa ao lado de alguns oportunistas. Algumas Fundações penduradas no OE e num falso mecenato, são também elas ninhos de corrupção e tráfico de influências.

        • Paulo Marques says:

          Não pode decidir sobre empresas da família, mas pode o colega, que pode fazer o mesmo. Ou pode passar a empresa a um familiar mais afastado, e já está tudo bem. Ora bem, então alargue-se, mas depois não nos espantemos se houver menos candidatos ou menos decisores.
          E, falando em fundos de descoesão, com tanto controlo sanitário, não é surpreendente que costume ficar onde está, e afinal não venha – algo que deverá aumentar com as alterações orçamentais acompanhantes da “bazuca”.
          Ao menos seremos pobres, mas honrados, embora duvide que deixemos de gostar de mulheres e vinho.

          Talvez fosse melhor aumentar a transparência, os meios de investigação, e continuar as alterações ao combate, mas dão menos horas de indignação, e depois a narrativa de que a culpa é toda nossa ainda podia sofrer mossas.

      • Paulo Marques says:

        Já mudaram.

Trackbacks


  1. […] corrupção não pode ser normalizada, escreveu hoje no Aventar o Renato, um artigo cuja leitura aconselho vivamente. Nem o Chega. O mesmo se pede […]