Quando, em 2004, o FC Porto venceu a Liga dos Campeões, com José Mourinho, uma imagem ficou marcada na minha cabeça para sempre. Com 8 anos na altura, não sei se a minha primeira memória dos factos remonta ao dia da final, ou a uma visualização posterior na Internet. Mas, o que interessa é, então, essa imagem: o festejo praticamente inexistente de Mourinho, acabado de vencer a mais prestigiada competição de clubes do mundo.
Marcou-me essa imagem pelo pouco sentido que, aparentemente, teria. Como é que alguém que atinge o topo, na sua área, não esboça qualquer tipo de reacção? Não salta, não grita, não esperneia? Levantar estas questões era ver-me nelas, pois a minha reacção, naquele contexto, seria algo desse género.
E, durante muito tempo, essa imagem foi sedimentando-se na minha mente como uma espécie de segredo do sucesso: querer sempre mais, orientar-se por objectivos, e estar sempre focado no próximo, no próximo, no próximo. Bem sei que surgiram teorias de que estaria já com a cabeça noutro clube (o que acaba por dar no mesmo), ou que estaria chateado com os adeptos, com as ameaças. Um folclore que me diz pouco. O meu foco era, e é, na tenacidade vencedora do treinador português.
E tenho pensado nesta história recentemente porque me parece que nós, enquanto sociedade, caminhámos para um extremo assustador de uma perspectiva um pouco semelhante à de Mourinho em 2004. Se nele poderíamos ver o foco de um vencedor, nos dias que correm assistimos a uma sede zombie por mais, mais, mais, mais informação, mais cobertura, mais engagement, mais likes, mais tudo. O ritmo desenfreado dos dias que correm torna-nos uma espécie de zombies digitais (e não só), numa absoluta ausência de controlo sobre a própria vida, andando ao sabor de todas as coisas e de coisa nenhuma.
E, com este viver incessante mas desprovido de um qualquer sentido lógico, perdemos a capacidade de exercer uma arte. E chamo-lhe arte pela raridade e pela capacidade que me parece ser necessária para a colocar em prática. Sim, coloco a arte nesse pedestal isolado. Mas são conversas para outro dia.
A magnânima arte de saber sair. Vivendo num clima constante de mais, mais, mais, a ideia de saída, a ideia de fim, a ideia, talvez a mais fundamental, de suficiente, é quase inexistente ou, por outro lado, existe mas ninguém lhe presta atenção. Ninguém quer perder o comboio da vida, arriscar-se a ficar para trás. Bastam duas horas offline para ter, desde logo, uma sensação de que “estamos a perder alguma coisa”. Queremos ser os últimos a sair da discoteca, do café, do concerto, do cinema, porque poderá haver sempre mais qualquer coisa de interessante para registar, para viver. De um ponto de vista puramente teórico, não é que haja algum mal nesta perspectiva. Mas, na prática, o que acontece é que torna-se mais um factor de perda do controlo das nossas próprias vidas. Temos dificuldade em perceber a validade das coisas e achamos, quiçá, que tudo é para sempre, porque o momento presente parece demasiado eterno. Estamos tão ligados à ficha, tão frenéticos, que perdemos a noção da possível linearidade do tempo (outra conversa para outro dia) ou, simplesmente, de quando é suposto, necessário, ou possível parar. Parar, simplesmente. Dizer não. Dizer “já chega”.
Estou em crer que muitos dos problemas do foro psicológico, distúrbios de ansiedade, burnouts e quejandos, provém precisamente desta incapacidade de parar. Não, não temos de continuar no mesmo trabalho que não nos preenche para toda a vida. Não, não temos que continuar numa relação tóxica apenas porque já passaram tantos anos que já nem sequer vemos a nossa própria individualidade. Não, não temos que estar sempre online, não temos que ir a todos os convívios, não temos, sequer, que responder continuamente a todas as notificações, convites, toques, e-mails, mensagens, enfim, toda a panóplia de distraçõezinhas que inventaram para nos manter entretidos. Como se a vida, aquela real, palpável, aquela que nos dá a sensação de espanto que perdemos em crianças, não nos pudesse entreter o suficiente. Basta estar atento. Afinal, como dizia Saramago, se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara.
Somos zombies deambulantes por uma vida semi-fictícia na qual só vemos os pés. Mas não precisamos de ser.
Belo post! Subscrevo.
E exige-se a a todo o tempo tudo se passe …na maior…cool… qualquer angústia é já uma depressão.
Se não és capaz de escrever isto tudo em 10 linhas… o diabo que te carregue!!
Um bocadinho na linha do: “poderemos chamar liberdade à servidão total que faz dos homens simples rebanhos de um pastor chamado Ideal?”
Ideias ótimas, & bem colocadas! 🙂
Não me lembro agora se o César Alves pertence à facção direitista do Aventar, como o Chico Figueiredo, ou se à (prevalente) facção esquerdista, mas isto, caro César, é o capitalismo.
À constante aceleração da modernidade, com a sua voragem de informação e entretenimento, junta-se o imperativo capitalista de produzir, crescer, ganhar e ter mais. A palavra essencial é mais. Nunca menos, nunca o mesmo, sempre mais.
Sem surpresa, a própria existência tornou-se uma extensão disto: temos de viver, saborear, viajar, experimentar mais, sempre mais. Há uma expressão em inglês – missing out – que ilustra o medo de se perder esse comboio. Ninguém quer miss out.
Isto é reforçado pelo culto dos ‘vencedores’, i.e. mamões insaciáveis como Mourinho, Ronaldo, Musk ou Bezos, por filmes e afins que martelam o mantra ‘tudo é possível’, ‘aim for the stars’, etc., pelas redes sociais, onde todos exibem o seu rabo metafórico ou literal, e pelo consumismo infrene que alimenta o monstro.
Como sair disto? Difícil, sobretudo quando se é jovem. O telemóvel e os wearables acabaram com a já ténue separação entre o mundo real e o digital. E o capitalismo é como o Terminator, não abranda nem desiste. Vai ainda piorar muito antes de melhorar.
Capitalismo já não é aquela coisa da propriedade privada de meios de produção?
O mais e mais a todos não é aquela coisa da esquerdalhada?
Tão perto, e tão longe.
Mas pensei que eras um dos que vendia que o capitalismo tem permitido mais e mais a todos, com gráficos com o limiar de pobreza do Pinker e tal.
Filipe Bostas
Porque será que o nosso Salazarista de estimação, é tão meiguinho quando te responde ?
Será coincidência ou são farinha do mesmo saco ?
O mais e mais a todos não é aquela coisa da esquerdalhada?
Sim e não, Jg. Sim se for para distribuir equitativamente. Não se for para alienar a carneirada e encher mamões.
Porque será que o nosso Salazarista de estimação, é tão meiguinho quando te responde ?
Porque, embora direitalha, tem mais miolos, brio e fair play do que alguns tugas xuxas que cá andam?
um exemplo de um dirigente que não teve a inteligência de perceber quando sair foi Salazar, acabou por cair da cadeira, pensou que serviu Portugal até ao fim, mas já era um empecilho no fim, saber sair é para poucos e Salazar não foi um deles.
Ora, em resumo, o Oliveira da Cerejeira:
Pensava que servia, mas já só dava azia.
Não percebeu quando sair e acabou por cair.
Não foi inteligente e terminou cadente.
Começou caudilho e findou empecilho.
Tripeiro
” mas já era um empecilho no fim”
Não concordo
Deu muito jeito a muita gente que se governou bem . O Banco Espirito Santo por exemplo.
As vigarices dessa quadrilha são muito antigas