Com o AO90, até as consoantes mudas falam!

Recentemente, um aluno de nacionalidade portuguesa pronunciou a palavra “concepção” articulando o /p/. Aproveitei a circunstância e fiz uma pequena sondagem à turma – a maioria dos alunos, para meu espanto, declarou que pronunciava do mesmo modo.

Os três alunos brasileiros não estranharam, porque isso corresponde, em parte, à sua pronúncia, sendo que acrescentam um /i/ de ligação a seguir ao /p/.

Ao longo das últimas décadas, a palavra, em Portugal, foi sempre (ou quase sempre) pronunciada sem a articulação do /p/ (kõsɛˈsɐ̃w̃ – concèção), sendo que essa consoante tinha, entre outras funções, a de obrigar à abertura da vogal pretónica.

O chamado acordo ortográfico (AO90) estipulou a eliminação dessas consoantes mudas, em nome da unificação ortográfica. Assim, em Portugal, passou a escrever-se “conceção”, enquanto, no Brasil, se manteve “concepção”, de acordo com a regra estapafúrdia (porque limitada) de que devemos escrever de acordo com a pronunciação. Em resumo: graças ao esforço de unificação ortográfica, portugueses e brasileiros passaram a escrever a mesma palavra de maneira diferente, quando antes escreviam da mesma maneira. Sim, unificação ortográfica.

Acrescente-se que a nova grafia portuguesa tem levado ao fechamento de uma vogal anteriormente aberta, levando a que muitos leiam “conceção” tal como lêem “concessão.

Mas o mistério mantém-se: o que poderá estar a provocar este regresso da grafia “concepção” e o nascimento de uma pronunciação anteriormente inexistente. Reconheço que a amostra é insuficiente, mas não me espantaria que uma sondagem mais alargada descobrisse o mesmo fenómeno.

Arrisco uma hipótese: a consulta da internet conduz frequentemente a páginas escritas por brasileiros. Os jovens portugueses, com espírito crítico incipiente, são influenciados por termos e por grafias brasileiros. Exemplo disso são o uso de palavras como “roteiro” ou “director”, quando se fala de cinema. O surgimento de uma grafia como “concepção”, entre tanto ruído, poderá estar a provocar o fenómeno com que fui confrontado – o /p/ desaparecido em Portugal é reencontrado no Brasil e, depois de tantos anos de emudecimento, passou a falar.

E ortografia? Não temos. Foi o que se pôde desarranjar.

Comments

  1. Anonimo says:

    O ““director” também pode vir das anglicidades. Lêem director no imdb, logo segue.
    Tal como se largam as provas mas se apanham evidências, as drogas fazem parte da adição e não do vício, para nem ir às resiliências.

    Mas umas perdem-se, outras consoantes ganham-se, agora já há contractos (de trabalho) e boas prácticas.

    PS: não foram os “jovens portugueses” que puseram todos os basquetebolistas ou andebolistas a jogar numa quadra.

    • António Fernando Nabais says:

      O “corte inglês” é uma realidade, com evidências, adições e resiliências, sim. Se o “director” viesse directamente do inglês, os alunos não diriam “roteiro”, mas “script”.
      Os mais crescidos também têm pouca consciência linguística, é verdade.

  2. Paulo Marques says:

    Por outro lado, temos uma língua mais viva do que nunca; sempre é alguma coisa interessante na província.

    • António Fernando Nabais says:

      Como é que saber que a língua está mais viva do que nunca? Quando é que esteve moribunda ou mais parada? Como é que se define, a propósito, essa qualidade de uma língua estar mais viva ou mais morta?

      • Paulo Marques says:

        Tudo isto é uma anedota, tentei acrescentar a minha. Boa ou má.

  3. Luís Lavoura says:

    Mas onde raio é que se usa a palavra “conceção” no dia a dia? Como é que os alunos do António foram dizer que pronunciam a palavra de uma certa forma, se com toda a probabilidade nunca a pronunciam?

    • António Fernando Nabais says:

      Um aluno usou a palavra numa aula minha. Achei curiosa a pronúncia, Perguntei aos outros como pronunciavam a palavra e responderam-me que o fazem da mesma maneira. O Luís consegue retirar disto tudo que, “com toda a probabilidade, nunca a pronunciam”? Portanto, os alunos pronunciaram-na, mas nunca a pronunciam? A sua conclusão é espectacular!
      O facto de não ser uma palavra de uso frequente significa que nunca é usada? Usar pouco é o mesmo que nunca usar? Ó Luís, isso deve ser cansaço!

    • Anonimo says:

      Por acaso é vocábulo que digo e ouço muito.
      Isto está assim desde a sua concepção, é um exemplo recorrente.

  4. Antionieta Pascoal says:

    Engraçado, eu agora quando digo Egito pronuncio sempre um p antes do t apesar de na escrita, pelo Acordo, não estar lá nada.

  5. francis says:

    Não percebo nada de linguas, mas, porque não se admite de uma vez por todas que existe a lingua portuguesa e a lingua brasileira? Sendo que esta utima é de facto muito parecida com a portuguesa, até porque derivou dela e tem as suas proprias caracteristicas. Porquê insitir em assassinar o português de Portugal que eu aprendi e se está a tornar nesta palhaçada vale-tudo ?

    • Tuga says:

      Os brasileiros falam também Português, como falam Português, as pessoas de Angola, Moçambique, Guine-Bissau, Cabo Verde etc, tal como nos USA, Austrália, etc etc, se fala inglês.
      O problema é que o Tuga tem a tendência geral de aceitar como seus os termos que se usam no Português doutros Países e por força das telenovelas do Brasil isso foi notório. Felizmente que a industria começou a fazer telenovelas em Portugal, se não o problema seria bem maior.
      O mais evidente exemplo da troca de um termo português por outro brasileiro foi a a substituição do termo bicha que sempre se usou desde que me lembro para designar um conjunto de pessoas colocadas umas atrás das outras pelo termo fila, apenas e só porque a palavra bicha tem em português do Brasil outro significado.
      É curioso que em Crioulo da Guine Bissau, bicha e um conjunto de pessoas colocadas umas atrás das outras .
      Não tiveram o mesmo “problema ” que os tugas.
      De resto, o que é que tenho a ver com o significado que os brasileiros dão à uma palavra.que eu uso.
      Para mim um fato é um conjunto de vestuário masculino constituído por casaco, calças e colete, quero la saber do que os brasileiros designam a mesma palavra.

      • Paulo Marques says:

        Tanto como passaram a mandar um email para combinar ir ao shopping fazer um brushing costumizar o cabelo. É a língua, pá.

  6. Jorge Pinheiro says:

    Se o Aborto Trampográfico diz que se escreve como se pronuncia, então posso escrever “recepção” porque pronuncio o “P”. E se um acordista me disser: “Mas estás em Portugal e deves escrever ‘receção’ porque é assim que se escreve em Portugal.” A isso responde: “Então no máximo há duas línguas e no mínimo o Português escreve-se conforme o local. Em qualquer dos casos isso contraria a grande finalidade do AO – a unificação.” E se devemos escrever como pronunciamos, então devo escrever “ólio” e não “óleo” porque é assim que digo a palavra. E os Portuenses devem escrever “Puârto” e por aí vai.

    • Anonimo says:

      E se devemos escrever como pronunciamos

      Pois, diria que no Português certas letras têm diferentes entoações…
      Casa terá de pacar a caza.


    • Se, no espanhol, essa fosse a regra, a letra V não existia, porque o som correspondente não existe. Em espanhol, lê-se V exactamente como se lê B.


  7. Eu sempre pronunciei o “c” em expectativa, expectável e espectador – sendo, por isso, ainda mais absurda, para mim, a supressão do “c” nesta palavras. A ressureição do “p” na pronúncia de concepção, pode, de facto, ter a ver com a palavra brasileira e/ou a inglesa, nas quais o “p” se pronuncia com clareza e, obviamente, se escreve. Noto que o facto de as línguas civilizadas (espanhol, francês, inglês e alemão) respeitarem os étimos latinos já dava azo a erros de escrita em português antes deste último acordo ortográfico (por exemplo, era, e é, frequente ler-se “práctico” ou “contracto”, consoantes mudas que foram suprimidas creio, em 45), pelo que, naturalmente, com a actual maior exposição ao inglês, onde essas consoantes “latinas” figuram sempre e, em regra, são pronunciadas (por exemplo, em actual), esses erros aumentarão.

  8. Maria Francisca Sepúlveda says:

    Só quem nunca estudou Linguística ou é um incorrigível preguiçoso é que apoiou, adoptou e difundiu esta verdadeira aberração. Agora temos três línguas portuguesas: o Português de África, mais concretamente Angola e Moçambique que, linearmente recusaram adoptar. Embora o Brasil o tenha ratificado, nem nunca o pôs (nem quis) e continua animadamente a falar e a escrever como sempre. Finalmente temos uma língua pateta, híbrida e irracional.