Banhos de água fria

Sem mudar de assunto… Parece que ultimamente tudo vai dar ao mesmo…

Etty Hillesum –  uma judia holandesa que morreu em Auschwitz em Novembro de 1943 e que escreveu um diário entre 1941-1943 – viu-se privada de muita coisa pelo regime nazi, apesar de ter sido, como dizia muitas vezes, afortunada comparativamente a outros.

Os decretos contra os judeus sucederam-se:  era precisa uma autorização para comprar pasta de dentes, deixaram de poder ir aos lugares de hortaliças, tiveram que entregar as bicicletas,  andar de eléctrico foi proibido e foram obrigados recolher a partir das oito, etc.

Neste momento, estamos, também nós, cada vez mais condicionados e pobres e revoltados e impotentes e desesperados face às medidas levadas a cabo pelos políticos que nos saiem na rifa.

Transcrevo, então, uma passagem, escrita a 4 de julho de 1942):

Cada camisa lavada que vestes é ainda uma espécie de festa. E cada vez que te lavas com um sabonete bem cheiroso numa casa de banho, que é só para ti durante meia hora, também.

Espero que não cheguemos a este ponto. Que não sejamos enviados para uma espécie de campo de concentração…

Comecemos desde já a dar valor a estas «insignificâncias» como uma roupa lavada ou um banho de água quente (que nos aquecem por dentro também) antes que delas sejamos privados…

A sofreguidão pela vida

Continuando a transcrever o Diário 1941-1943 de Etty Hillesum (judia holandesa que morreu em Auschwitz em 1943)…

A 21 de novembro de 1941, também uma sexta-feira, Etty, com 27 anos, escreveu:

A sofreguidão deve existir igualmente na minha vida espiritual. O querer ingerir exageradamente, o que de vez em quando culmina em pesadas indigestões.

(…) [a mãe] Comia com gula e devoção. (…) Na sofreguidão dela havia algo como se ela tivesse medo que o mundo acabasse. (…)

Uma pessoa pode ter fome de viver. Mas com a sofreguidão pela vida, o objectivo é ultrapassado.

Vida = fórmula (?)

Continuo a transcrever o Diário de Etty Hillesum para este espaço. Etty, uma escritora judia que morreu em Auschwitz em 1943.

Na quarta-feira 22 de Outubro de 1941,  poucos dias após ter iniciado a Batalha de Moscovo –  uma das mais importantes e mais longas da Segunda Guerra Mundial e em que morreu cerca de um milhão de pessoas – Etty, com 27 anos na altura, escreveu isto:

A vida não se apanha em meia dúzia de fórmulas. No final de contas é com isso que te ocupas constantemente e que te obriga a pensar de mais. Tentas capturar a vida em algumas fórmulas, mas tal não é possível, a vida tem infinitas nuances e não se deixa apanhar nem simplificar. Mas por isso mesmo, tu podes ser simples.

Deus: dentro ou fora?

 

Já aqui disse que havia comprado o Diário de Etty Hillesum, a judia que morreu em Auschwitz em Novembro de 1943.

Apetece-me partilhar o que ela escreveu a 26 de Agosto de 1941. Pode servir para discussão!

Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo.

Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Esses procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que essas procuram Deus dentro de si.

Etty

Um nome tão pequenino para se chamar a alguém tão grande…

Etty foi uma judia holandesa que, tal como Anne Frank, escreveu um Diário durante a ocupação nazi. Morreu em Auschwitz. Tinha apenas 28 anos.

Soube de Etty ontem, ao ler a crónica de Frei Bento Domingues no Público.

O Diário (1941-1943) de Etty Hillesum está traduzido para português e publicado pela Assírio e Alvim. Transcrevo algumas passagens desse texto incómodo e inquietante:

Podem tornar-nos as coisas algo complicadas,

podem roubar-nos alguns bens materiais, alguma aparente liberdade de movimentos,

mas somos nós que cometemos o maior roubo a nós próprios,

roubamo-nos as nossas melhores forças através da nossa mentalidade errada.

Através de nos sentirmos perseguidos, humilhados e oprimidos. Através do nosso ódio. Através de fanfarronice que esconde o medo. Bem podemos, às vezes, sentirmo-nos tristes e abatidos por causa daquilo que nos fazem, isso é humano e compreensível. Porém, o maior roubo que nos é feito somos nós mesmo que o fazemos.

Eu acho a vida bela e sinto-me livre. Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim. Creio em Deus e creio na humanidade, e aos poucos vou-me atrevendo a dizê-lo sem falsa vergonha.

A vida é difícil, mas isso não faz mal. Uma pessoa deve começar a levar-se a sério e o resto segue por si mesmo. E ‘trabalhar a própria personalidade’ não é certamente um individualismo doentio. E uma paz só pode ser verdadeiramente uma paz mais tarde, depois de cada indivíduo criar paz dentro de si e banir o ódio contra o seu semelhante, seja ele de que raça ou povo for, e o vença e o mude em algo que deixede ser ódio, talvez até em amor ao fim de um tempo, ou será isto pedir demasiado? Contudo é a única solução.

Apesar de todo o sofrimento, Etty acreditou na humanidade…

Perante o seu testemunho, tornam-se fúteis os nossos queixumes.