“Se é que Deus existe…”

Chegado a um balcão dos CTT, instalado numa casa de comércio, deparo-me com um idoso de aparência octogenária junto ao balcão, de roupas limpas mas desgastadas, magro, com ombros curvados pelo tempo, pescoço magro a destoar com a cabeça larga, apoiado numa bengala e de máscara presa abaixo do nariz.

Por entre uma respiração cansada, o idoso solicitou à funcionária que o ajudasse no pagamento da conta que constava da correspondência registada que acabava de levantar, remetida por uma entidade pública.

A funcionária, solícita, ajudou mas não foi capaz de esconder a sua indignação: a conta a pagar era de um cêntimo. A resposta do idoso, por entre a respiração cansada e forçada, que soou a uma mescla de derrota e de revolta, foi “Temos de pagar, menina. Temos de pagar”.

Paga a conta, o idoso agradeceu à funcionária o seu cuidado, desejando “Que Deus a ajude”. E após voltar-se para a porta de saída, olhou ligeiramente para trás e considerou “Se é que Deus existe…”, e apoiado na sua bengala saiu para a rua como se carregasse o mundo às costas, fustigado pelo vento e por uma chuva miudinha.

Numa breve cena, assisti a uma total desconstrução do progresso, da eficácia, da proximidade e da racionalidade, com que nos querem vender a modernidade coeva. À desconstrução de políticas, discursos, projectos, apoios, planos, bazucas, da era digital, dos “simplexes”, da inteligência artificial, dos “summits”, das redes, dos Direitos Humanos, dos discursos e das promessas. À desconstrução da fé.

Faz Marcelo Rebelo de Sousa muito bem em ir ao Catar pugnar pelos Direitos Humanos, entre um jogo de bola e umas “selfies”. Os tais direitos que, de início, eram para esquecer, mas que, afinal, já são para lembrar.

Até porque cá por casa está tudo bem. Graças a Deus. “Se é que Deus existe…”

Há mais vida para além do medo # 1 – O exemplo do Tenente Columbo

Num passado recente, disse-se que “há mais vida para além do défice”. Mais tarde, e paulatinamente, começou a desenvolver-se a ideia de que “há mais vida para além da pandemia”. Hoje, diria que “há mais vida para além da guerra”.

Curiosamente, existe um denominador comum ao défice, à pandemia e à guerra, enquanto temas fulcrais – para não dizer únicos – da actualidade, em cada um dos momentos: o medo.

Enquanto instrumento que mantém activo o nosso sistema de vigilância, o medo é essencial para que estejamos atentos ao que se passa em nosso redor e às interacções com o tempo, o espaço e os outros, que fazem parte do nosso quotidiano. É o que nos mantém em alerta quando atravessamos a rua, quando falamos com alguém, quando tomamos uma decisão.

Mas, o medo é, também, um ancestral instrumento de condicionamento comportamental quer no âmbito da educação quer no âmbito da vida em sociedade. Seja o medo do papão ou do bicho mau, para que se coma a sopa toda, seja o medo de expressar opinião ou tomar posição pública sobre certo assunto.

Ditaduras e democracias, através de métodos variáveis e com graus de severidade diversos, usam o medo como modo de modelação de comportamentos quer individuais quer colectivos. Seja propaganda, seja publicidade, a indução de comportamentos por via do medo, visando acção, omissão ou reacção, é transversal a qualquer organização social, corporativa ou religiosa.

Aqui, existe um papel fundamental por parte da comunicação social, no modo como o medo é transmitido ao indivíduo visando a sociedade. Reiterando mensagens de conteúdo pré-estabelecido, a ordem da percepção, e a percepção da ordem, constroem-se com vista ao estabelecimento de uma realidade quase sempre conducente a uma só verdade.

Sem querer recuar ao Estado Novo, em que o medo era, desde logo, um instrumento de perpetuação do poder instalado e dos respectivos interesses económicos, corporativos e económicos circundantes, bastará apreciar como, em democracia, o medo tem sido um recorrente mecanismo de condicionamento social, quer em matéria de pensamento quer em matéria de comportamento. [Read more…]

O Equilíbrio do Terror #5 – Uma luz no interior do túnel

Lá em cima, nas ruas de Kiev, o carniceiro de Moscovo espalha o terror. Lá em baixo, na estação de metro convertida em bunker para os refugiados que não conseguiram sair da cidade a tempo, uma mãe de 23 anos dá à luz a pequena Mia, no cenário mais adverso. Uma luz de esperança numa cidade tomada pelas trevas.

Mesmo na hora mais sombria, a vida teima em resistir e enfrenta a tirania. Na criança que nasce no metro de Kiev, nas manifestações violentamente reprimidas nas principais cidades russas ou na Ilha das Serpentes, onde os militares ucranianos que a defendiam foram abatidos pelas tropas de Putin, não sem antes mandarem foder o regime.

“Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.…”

De quem são as nossas experiências?

Estou em crer que não haverá nada mais genuíno do que a capacidade de sentir empatia por outro ser. Acredito nisto porque não considero a empatia algo exclusivamente humano. Porque a sentimos nos animais, por parecerem ser capazes de sentir as emoções uns dos outros e também dos humanos. E isso faz-me crer que, escondido nos confins dos mistérios do universo que nunca chegaremos a compreender, a empatia tem um lugar muito próprio e apropriadamente seu.

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Sugar a essência da vida

@ Buena Vista Pictures/Photofest

 

O Clube dos Poetas Mortos era o grupo das pessoas que queria sugar a essência

da vida. Que queria extrair de cada pequeno momento tudo o que ele teria para dar.

O filme é aclamado pela crítica, é citado vezes sem conta, mas parece-me que nós, enquanto seres-humanos, nem sequer chegamos perto de o perceber.

Quando nascemos, a vida está-nos praticamente pré-estabelecida. Sabemos que temos um percurso escolar obrigatório, é-nos quase impingida uma ida para o ensino superior, por forma a construir uma carreira que dure 40 ou 50 anos, a reforma na casa dos 60 e depois o calendário, como nas prisões, de quantos dias faltam até morrermos.

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As últimas palavras de Steve Jobs

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” Cheguei ao topo do sucesso nos negócios.

Aos olhos dos outros a minha vida tem sido o símbolo do sucesso.

No entanto, para além do trabalho, tenho pouca alegria. A minha riqueza é simplesmente um facto a que estou acostumado.

Neste momento estou na cama de um hospital recordando a minha vida, percebendo que a riqueza que construi e todos os elogios que recebi e me deixaram tão orgulhoso, tornaram-se insignificantes perante a iminência da morte.

No escuro quando vejo a luz verde e escuto o ruído do equipamento da respiração artificial sinto a morte a aproximar-se.

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Vida

Isto não está fácil. Nada fácil. Pensei que era um problema daqueles minutos. Depois pensei que se ia resolver, quem sabe, no dia seguinte ou no outro, que agora começa, mas o problema está na mesma. Sem solução.

Tenho que escrever, mas não sei o quê. Quer dizer, até sei, mas os dedos não pressionam as teclas que eu quero, insistem, teimosas, em amarfanhar outros pedaços de plástico que, para o caso em apreço, não eram para aqui chamadas. Falei contigo no dia dos meus anos sobre os concursos dos profs, coisas banais e até falamos do que seria a tua vida profissional para este ano lectivo. Pensei mesmo que a “constipação” estava arrumada. Não estava. Foi uma surpresa quando vi o post no face da Graça.

Foi no Aventar que dei nota pública da partida de dois dos homens mais brilhantes que alguma vez conheci: Adriano Teixeira de Sousa e José Paulo Serralheiro. Ao ler, hoje, o que escrevi sobre eles, não tenho dúvidas – estás junto deles, junto dos homens singulares, aqueles que estão sempre presentes, ainda que alguns insistam em dar nota da tua partida.

E, ontem, mais uma vez, uma lição daquelas. Rumei à Figueira no Aventarmobile que o Fernando fretou. Fomos, como sempre fazemos, em amena cavaqueira (cruzes canhoto) politica, com histórias deliciosas, com bocas, com ironias e até com umas anedotas. Tivemos até tempo de falar da morte e dos rituais e como tu serias menino para aparecer ali e rir do logótipo à entrada daquela coisa. Mas, tu, até na hora do até já, consegues marcar. Não houve rituais, não houve palavras, nem sei sequer se houve gestos. Mas, para azar teu, rezei. Não sei porquê, nem para quê, mas senti essa necessidade que nem sequer é muito minha.

Pedi que ficasses junto dos maiores e que continuasses com o teu mau feitio a chatear esta malta. A dizer que falta a barra a dividir o texto ou que era preciso malhar naqueles filhos da…!

Eu sei que este poderá ser o parágrafo dos lugares comuns, mas vou correr o risco de te chatear mais uma vez: ainda que queiras, não consegues morrer. Porque vais continuar aqui, sempre presente, em cada linha que se escrever, em cada boca que conseguir mandar aos gajos da direita. Em cada linha a malhar no teu clube que (calma!) eu não vou escrever para respeitar o Aventar, esta casa comum, tão grande, mas onde não cabe  o futebol. E, enquanto eu me conseguir lembrar de ti, enquanto o Aventar se lembrar de ti, tu não morres. Estás lixado (aqui era para escrever outra coisa). Vais ter que nos aturar, ainda que não queiras.

Estou cá desde o primeiro dia – soube ontem que somos apenas três. E isso, ainda que não queira, deixa-me alguma responsabilidade acrescida. Este é mesmo o meu maior problema: como é que a gente se vai aguentar sem este chato que insistia em unir tudo e todos no Aventar?

Podias não concordar e até achar que um dos nossos meteu água, mas se é AVENTADOR é para defender até à morte. Quem se meter com um dos nossos leva, ainda que o nosso não tivesse razão nenhuma.

Pois, é isto. Termino sem dizer nada, mas foi só isto.

Meu caro, até já.

A vida entre carimbos

Há a vida plena de riscos, vivida sobre a lâmina, pulsante, imprevisível, trágica e hilariante, e há a vida tal como é vivida no cartório notarial. A vida no cartório toma o seu tempo e segue os seus caminhos, que se traduzem inevitavelmente em fotocópias, registos, declarações, certidões, actas de deliberação, certidões de teor, registos prediais.

No notário, nada é súbito. Nem a morte, para tomarmos o exemplo mais extremo. Uma pessoa pode estar morta, inegavelmente morta, mas só o estará deveras quando o óbito tiver sido declarado na Conservatória do Registo Civil, e logo em seguida nas Finanças. Não se está morto sem que os documentos, muitos documentos, o comprovem. Se há pulso ou não, se os pulmões aceitam ar e o devolvem ou não, isso é matéria que só interessa no mundo de lá de fora. Dentro do notário é preciso certidões. São elas que traçam a linha entre a vida e a morte. [Read more…]

Valsa lenta

Felizes os que morrem devagar, e nesse devagar vão revendo tudo quanto foi, e quanto é, e o que ficará. Morrem como quem chega à estação de destino, o comboio abranda e nesse abrandamento vêem com detalhe a paisagem que até aí era mero esboço fugidio, recolhem a bagagem, lançam um último olhar ao lugar que ocuparam, e saem, devem sair.

Se te dizem que é melhor morrer de repente, que a morte te apanhe desprevenido, não acredites. É melhor morrer devagar, com tempo para saborear os pêssegos deste Verão, sabendo que não haverá outro Verão, e deixar que o mundo inteiro se concentre por instantes no prazer deste pêssego maduro, e que ele valha por si mesmo, sem pressas, não porque é o último mas porque é perfeito. [Read more…]

O Tó da Farmácia partiu

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O Tó da Farmácia deu, ontem, entrada na sua última morada. Tinha 51 anos, e o caranguejo da morte abocanhou-lhe o pâncreas, chupou-o até ao osso e entregou-o à família para um último adeus, com aquele ar de cera que anuncia a passagem.

Um simples telefonema, uma mensagem, e a notícia era, então, definitiva para todo o clã: o Tó, o mais certinho de todos, tinha hora marcada numa capela mortuária, na mesma igreja que quase todos havíamos frequentado.

Eu era mais velho, 10 anos naquele tempo que eternidade, tinha quarto alugado na casa de um deles, estudava e trabalhava. Olhavam-me de soslaio, era um velho. No regresso das aulas, na Praça, lá estavam eles, a jogar à bola com os bancos por balizas, a preparar a última estória para memória futura, a aprenderem o primeiro sabor do cigarro. No mesmo sítio, onde, mais tarde, se iniciaram nos drunfes com cerveja, na ganza, no chuto. Outros que não. Ficava por ali um pouco, lançando olhares às sopeiras, titubeando uns piropos, naquela aprendizagem que todos fazíamos no jardim público ao pé de casa. [Read more…]

Há coisas assim

Ser Professora (ou Professor!) em Portugal é, sem dúvida, uma profissão de risco.educarmata

São assustadoras as notícias dos últimos dias.

Obviamente há, nos casos mais recentes, muitas coisas por explicar, mas estas situações são sinais extremos de que há algo de muito mau nas escolas – e quem lá anda sabe isso!

Não há muitas palavras que permitam explicar a sensação de desconforto, a ideia de que se trabalha atrás do nada, a preencher papeladas sem sentido, para justificar insucessos de alunos que teimam em não aprender, para proteger o profissional dos ataques dos pais. Direcções que incomodam, regras que mudam todos os dias, e o desemprego e o roubo nos salários, e…

Tradicionalmente, o trabalho dos Professores continua em casa, invade e prejudica o ambiente familiar – são fichas para realizar, para corrigir, actas para elaborar e sei lá o quê mais! E os filhos, ali ao lado, entregues à solidão de quem se volta para onde não devia, digo eu.

A pasta, essa maldita – confesso que me consegui ver livre dela ao fim-de-semana: escondo-a na mala do carro. Foi uma atitude de defesa que recomendo! O trabalho? Espera! É mais saudável assim.

Mas, o ambiente está duro, pesado e talvez seja interessante  cruzar informações, abrir os olhos e dar um olá a quem se esconde. Vale a pena estudar isto e talvez esteja aqui a guerra que todos os professores e todas as professoras quererão comprar.

 

Contrato de funeral em vida

O crédito pode ser uma coisa funesta, já aprendemos essa lição, e pode até ser fúnebre. A funerária daqui do bairro, que teve sempre, como todas as funerárias, o constrangimento de não saber que pôr na montra – a miniatura de um caixão, um recipiente para cinzas, uma coroa de flores? – resolveu, por fim, essa dificuldade afixando um cartaz que oferece a quem passa uma oportunidade única. Chama-se “Contrato de funeral em vida” e consiste num “contrato de prestação de serviço funerário, efectuado em vida”.

Para além da sinistra imagem de depositar dinheiro a cada mês para vir a ter direito a um funeral, chama-me a atenção a particular disposição das palavras que permite ler que o contrato se destina a que nos realizem o funeral quando ainda estamos vivos e a espernear, se é que ainda se esperneia. Sabendo-se o que sabemos hoje, o “contrato de funeral em vida” bem pode ser a mais perfeita metáfora do conceito de crédito.  [Read more…]

Ser Feliz Com Nada

sugestãoMas por que motivo e por que diabo não poderei ser feliz com Nada?! Viver de belo-árvore-flor-livro, viver de céu, sol e mar, tratar das minhas pencas, cenouras, favas, couves, cuidar das minhas árvores, restringir-me ao essencial, abrir o olhos para o ecrã da vida muito mais que para o ecrã tóxico da grande mentira virtual, cumprir com o que me incumbe nas responsabilidades de pai e depois não consumir porra nenhuma. Nada. Não consumir, não comprar, não pagar, não gastar absolutamente nada, em primeiro lugar por não fazer parte desta turma de cus sagrados, sibilas, cérebros abençoados, especializados em viver acima das possibilidades de dois ou três portugais com o resto da gente como eu por estes dias a roçar a indigência pelas esquinas, a sensação de injustiça nos precipícios de onde ainda não se atiraram. Em segundo, por desdém e desprezo assumido para com esses prazeres legítimos que assumimos como naturais, um café, um sumo, um jornal, um chocolate, uma alegria comercial qualquer dentro do miserável espectro paupero-classe média dos vinte euros. Quando estou horas à beira-mar, sinto que, sim, eu posso. Por isso declaro desde já que abdico de consumir. Uma factura por cada pão. Uma grande paz por cada dia sem aquisições minorcas nem despesas fúteis nem recreio, nem coisa absolutamente nenhuma. Esses que venderam o cu para hoje passearem o espólio de anos de saque à mama da política que olhem para mim: façam bom proveito do furto. Tratarei de ser feliz com Nada.

Manoel de Oliveira, parabéns!

manoel_de_oliveira[1]

Hoje comemora os seus 104 anos cheios de vida. O mais antigo realizador de cinema em actividade e de olhos postos em novos filmes! Parabéns.

É preciso muito fôlego para soprar tantas velas. – Isso não lhe falta!

Parabéns pelo seu amor à vida. P’ro ano quero desejar-lhe mais um «feliz aniversário»!

Quando se me Revolvem as Vísceras

Custa-me engolir a súbita compaixão em surto de todos quantos acalentaram e embalaram a serpente estrutural que hoje mesmo nos morde a conjuntura. Compassivos, só agora?! Não estavam a ver o grande acidente nacional mesmo, mesmo, a eclodir?! Nem do alto do seu ponto privilegiado de observação?! Olho para eles e depois para mim e sinto-me uma besta. Quando não se consegue evitar grandes males colectivos, agindo embora com todas as forças e toda a constância de que se é capaz, o desgosto não pode senão ser fundo. O meu é assim. Fundo. Tanta morte no horizonte. Tantas vítimas escusadas. Tanta desolação. Quem abriu caminho para ela?! E como fazer Justiça retroactiva?! Quem dera a Justiça imitasse o Fisco!

Não me adianta recair no mesmo martírio vezes sem conta. Tento sair dele, sair das minhas próprias masmorras pós-traumáticas [ter testemunhado em seis anos, como que em câmera-lenta, a Queda do meu País e ter esbracejado para nada como um parvalhão!] para descobrir uma linha-Ariadne de libertação pessoal. Se eu a desejo com ardor, algum dia me sorrirá, tenho a certeza. Entretanto, revolvem-se-me as vísceras perante refinados fingidos: entre as bolachas lacrimosas de um Nicolau Santos, que boceja à Meia-Noite de cada Sexta a sua compaixão requentada, e a moto-serra económica do curto e grosso Camilo Lourenço, prefiro a segunda. Mil vezes. Pastéis de compaixão, quando lhes interessa e o tabuleiro muda, não, obrigado!

Não Existir Para Ninguém

O que fizemos e fazemos dos nossos velhos?

Tenho tido um tempo interminável para assentar algumas ideias acerca do problema geral da divina invisibilidade particular de cada qual, sobretudo ao olhar para algumas emanações do último Censos 2011. O envelhecimento da população. Está à vista o problema de décadas de corrupção e decrepitude políticas: lá, onde as infraestruturas foram feitas, feitas duas vezes, feitas três, feitas a rebentar de luxo e redundância, as nossas gentes, os nossos velhos, os nossos!, foram envelhecendo, foram-se isolando, numa pobreza igual, pacata, horrorosa, remetendo-se a uma invisibilidade acusadora. Com reformas de duzentos e picos, ou Estado Social-Manguito!, não podiam competir com os Elefantes Brancos que os Governos, de pau feito para outros negócios de suculento retorno comissionista e eleitoraleiro, sempre priorizaram. Assim, por todo o Portugal, nasceram-nos ilhas de velhos esquecidos de todos, sobretudo dos próprios filhos, três, quatro, que deixaram completamente para trás o terem tido um pai, o terem tido uma mãe. Se isto, em Portugal, fosse um caso isolado… Não é. Parece regra. Gente enterrada e relegada pelos seus muito antes de morrer. Em plena cidade. Em plena aldeia. Conhecemos casos. Esquecidos. Impedidos de netos, de um beijo, uma palavra quotidiana. E, no entanto, sem eles nunca poderíamos sequer começar por Ser.   [Read more…]

A pessoa que somos

481 A pessoa que somos, e que parece evidente, aprende-se devagar.

Também é matéria difícil. Mas tudo o que é essencial na vida é difícil. (…)

(Vergílio Ferreira, Pensar)

Um dia… Um dia, alguém irá conseguir que A Minha Pessoa seja matéria a estudar nas escolas! Ideia maluca? Eu não sei…

Despejados da vida

Três casos em três semanas.

Amaya, 53 anos, atirou-se de um quarto andar de que ia ser despejada (País Basco).

José Miguel, 53 anos, foi encontrado morto no pátio do edifício onde residia (Granada). Pouco depois, lê-se no PÚBLICO de hoje, chegaram os agentes que iam despejá-lo.

Foi preciso ter acontecido mais um suicídio na Espanha para que o Governo espanhol acelerasse a mudança de lei que pode aumentar o período em que as pessoas em situação difícil não tenham de pagar a prestação.

A Espanha está aqui ao lado… São nossos vizinhos.

A nossa situação não é muito diferente da deles. Esperemos que o nosso Governo esteja atento… e que não actue quando fôr tarde demais.

P.S.- ser despejado de nossa casa, não é ser despojado da nossa vida (toda ou quase toda)? Boa ou má, é a nossa casa, é a nossa vida.

Sem ninguém

2 de Novembro, Dia dos Fiéis Defuntos. Pensei naqueles que não têm ninguém que os recorde, que deles sintam saudades e que por eles chorem. Aumentou em Portugal o número de corpos não reclamados (sem-abrigo, toxicodependentes, imigrantes, etc.). Mortos que ninguém chora.

A vida parece ser injusta para tantos seres humanos. Uns muito amados e saudados, merecedores até de homenagens e prémios póstumos ao fim de um ano, de dez, de cinquenta… Queria dar um bem-haja ao serviço prestado pela irmandade, de São Roque que, para muitos, é a única família presente no funeral. Tratam de providenciar ao falecido uma despedida digna. Manifestam também que aquela criatura significou, com toda a certeza, algo para alguém nalgum momento: algum gesto seu, um olhar, uma palavra. Por isso, terá valido a pena a sua vida!

Um caquizeiro mais forte que a bomba atómica

Acabo de descobrir que o fruto que eu mais aprecio tem um outro nome, o malandro! Não é que o meu dióspiro – chego a comer 2 ou 3 por dia na sua época (que é justamente agora), simples, com banana e/ou bolacha Maria- , também é conhecido como caqui (kaki, no Japão)?

Santa Ignorância!

Estou mesmo radiante, porque aquilo que eu ia escrever sobre um certo caquizeiro é afinal, sobre a minha árvore predilecta.

Descobri, ontem à noite, uma história linda, mas ainda mais fenomenal por ser verídica: conta-se que um diospireiro (caquizeiro) foi mais forte que a segunda bomba atómica que matou 200 mil pessoas em Nagasaki.

Escreve Rubem Alves, em Do Universo à jabuticaba:

Morreram os seres humanos, morreram os animais, morreram as plantas. Foi então que uma coisa extraordinária aconteceu: passado o tempo, uma árvore que o fogo havia queimado e todos julgavam morta começou a brotar. Era um caquizeiro. Os japoneses se assombravam com aquele milagre: uma árvore mansa que foi mais forte que a bomba! E tomaram a ressurreição da árvore do caqui como um símbolo da teimosia da vida. Começaram então a colher as sementes lisas dos frutos daquela árvore e a plantá-las. Quando as plantinhas nasciam e cresciam um pouco, eles as enviavam como presentes de paz a todas as partes do mundo. Para que ninguém perdesse as esperanças…

E sabem que mais? Eu mesma tenho um diospireiro… e assim que puder, vou contar-lhe esta história de um certo primo que vive lá longe, na ‘Terra do Sol Nascente’!

Aborto

Abriu a primeira clínica de aborto para interrupção voluntária da gravidez na Irlanda do Norte.

Apesar de o aborto continuar a ser ilegal na Irlanda do Norte, a inauguração do Centro Marie Stopes (ontem) levantou uma onda de protestos por parte de conservadores católicos e protestantes irlandeses. A manifestação junto ao Centro Marie Stopes contou com pelo menos 200 pessoas.

«Kill me before birth- it’s abortion» e «Kill me now-it’s murder» – lê-se num cartaz.

A minha posição? Sou pela vida. E se fosse eu o embrião ou o feto?

A felicidade também faz um jornal

Hoje, Miguel Esteves Cardoso (Público) sacia-nos com estas palavras, poesia perdida (?), poesia que não é um engano nos dias que correm, poesia que é a nossa maior necessidade. As suas palavras – intencionalmente encaixadas entre notícias de austeridade, troika, dívidas, TSU, pobreza, desaparecimento da classe média, etc.- que, com amor se casam uma às outras, como MEC e Maria João, falam do que verdadeiramente interessa na vida, ofuscado pela miséria que nos aparece mais visível:

O futuro contém a nossa morte e, depois dela, o infinito de nadas, chato como o ferro do cosmos, que antecedeu os nossos nascimentos.

A felicidade, se calhar, é desejar que as coisas não piorem muito, de dia para dia, para não se notarem tanto.

O presenteaquilo que ainda se tem, a começar por estar vivo e lembrarmo-nos de termos estado pior — é a felicidade maior, somada às memórias de felicidades que continuam vivas e que nos fazem sorrir, pertencer e desejar bem aos outros que ainda não as tiveram. Se não nos lembrarmos de termos estado pior ou não tivermos a esperança de ficarmos melhor, já não conta como felicidade; já não conta como presente. Não é só dizer “eu ainda consigo”: é preciso também haver a consciência de ter prazer, não em conseguir, mas nas coisas que se fazem.

Todos sabemos o que nos espera. Interessa apenas decidir não tanto o que fazer enquanto esperamos como descobrir as formas que ainda nos restam de nos distrairmos. A distracção é a forma mais exaltante da vida. Quem se pode distrair — amando, lendo, pintando, trabalhando, coleccionando, politicando — não pode ser inteiramente triste, não por não estar apenas simplesmente não-morto e vivo, mas por ter encontrado a maneira de fazer pouco do presente, em atenção ao passado ou ao futuro lembrado ou desejado, como momento e movimento em direcção a eles.

Restam as consolações.

Quando é ser momento ou movimento a única coisa, para se ser feliz, que se quer.

Lázaro

Há escritores, esses bons amigos, que nos abrem portas ou retiram pedras para o lado para vermos a luz, como o australiano Morris West (1916-1999), um dos romancistas “mais populares” do século XX:

Sempre me interroguei sobre Lázaro. Transpusera os portões da morte. Quereria regressar à vida? Agradeceu a Jesus Cristo por o trazer de volta? Que tipo de homem foi depois? Como foi que o mundo o viu? (Uma Visão Sublime, 1996)

(Ressureição de Lázaro, Rembrandt, 1630/31 )

Vida = fórmula (?)

Continuo a transcrever o Diário de Etty Hillesum para este espaço. Etty, uma escritora judia que morreu em Auschwitz em 1943.

Na quarta-feira 22 de Outubro de 1941,  poucos dias após ter iniciado a Batalha de Moscovo –  uma das mais importantes e mais longas da Segunda Guerra Mundial e em que morreu cerca de um milhão de pessoas – Etty, com 27 anos na altura, escreveu isto:

A vida não se apanha em meia dúzia de fórmulas. No final de contas é com isso que te ocupas constantemente e que te obriga a pensar de mais. Tentas capturar a vida em algumas fórmulas, mas tal não é possível, a vida tem infinitas nuances e não se deixa apanhar nem simplificar. Mas por isso mesmo, tu podes ser simples.

Humanista

Defino-me como um humanista. Sinto a vida como um valor supremo e por isso sinto muito orgulho na história de Portugal e nos vários episódios que se foram resolvendo “da melhor maneira”.

Vem isto a propósito do José Hermano Saraiva. Ou antes, da sua morte.

Não fiquei contente com a sua morte apesar de o ver mais como o JJC do que como o viu a Céu.

Entendo a Céu – somos da mesma geração e o JHS fez parte da nossa aprendizagem. Por sorte (ou azar) sempre adorei história, apesar de ser mais dado aos números e muito cedo dei de caras com a fragilidade científica do JHS. A sua ligação à Ditadura chegou-me ainda mais tarde. Não tenho, por isso, qualquer respeito intelectual pelo senhor.

Mas isso não me impede de ter ficado triste por ter lido “Menos um” no título do post.

Nem pelo facto dele ter sido o responsável directo pela morte de muitos portugueses lhe desejaria a morte. A ele como a outros imbecis.

A Grande Mesa da Exclusão

Vejo imperdoável permanecer vivo neste desmoronamento da esperança, trazer todos os dias as carnes laceradas de uma incerteza asfixiante para mim e para os meus próximos, observando que a espécie a que pertencemos parece sensível à hubris da palavra transgredida, mas indiferente à clandestina normalidade de um amor proclamado, que até se possa viver dele, sorrir na própria nudez e indigência, o que nem merece comentários. Eis-me de novo à mesa, à grande mesa da exclusão. Parece que a coutada que os políticos reservaram para si permitiu caçadas excepcionais, prodigiosas. Servos da gleba, para nós nem os restos – ficou estipulado.

Num instante tudo muda

Ao folhear o Público de hoje, fui atraída pela frase “O futebol como coreografia da vida” do deputado do PS, Francisco Assis, que escreve às quintas naquele diário. “Gosto de futebol como jogo, paixão, estratégia, coreografia e vida. Está lá quase tudo”.

Refere-se, sobretudo, ao desempate por grandes penalidades, comentando de forma curiosa e muito interessante (parabéns): “Já não há mais jogo, só penáltis. O estádio pára. O tempo desaparece. Estamos perante a tirania da geometria pura. De um lado um marcador, de outro um guarda-redes. Esquecemo-nos que são homens, de certa forma deixaram de o ser. Solidão absoluta envolta numa multidão muda e expectante. Não é imaginável uma situação mais cruel. Pura existência individual confrontada com o destino. (…) Curiosa metáfora de tantas vidas. Contudo, num instante tudo mudou. (…) Um “golo é muito mais do que um golo. É arte, paradoxalmente imprevisibilidade e dir-se-á que foi feita justiça. Provavelmente foi o génio que triunfou. Seria reconfortante pensar que as duas coisas andam a par. Fiquemos satisfeitos por admitir que por vezes elas não se contrariam. Já não é pouca coisa.(…)”

A vida feita de instantes de arte, justiça, injustiça, génio, crueldade, azar… Feita de instantes de glória e de falhanços.

Também penso que há muitos momentos em que estamos completamente sós: nós e o problema, «o marcador» e o «guarda-redes». Não podemos contar com mais ninguém. E ninguém pode resolver «a coisa» por nós. «A multidão» não pode fazer nada. Tudo está nas nossas mãos. É também o «agora ou nunca» do instante.

Abolir as grandes penalidades? Há quem defenda isso. Afinal já «não é jogo»…

Tal como a selecção portuguesa, ganhamos umas, perdemos outras. Olhemos para a frente, chegará outra oportunidade!

Um gesto de silêncio

(Adão Cruz)

Todos nós temos os nossos desertos pequenos ou grandes e
todos nós temos os nossos labirintos pequenos ou grandes
simples ou complexos

Os caminhos e os percursos entre os nossos desertos e os
nossos labirintos mais rectos ou mais sinuosos são ao fim e
ao cabo os caminhos da nossa vida

E esses caminhos são feitos predominantemente de silêncio

A grande força da nossa vida reside no silêncio [Read more…]

O fosso que todos ajudamos a cavar

O fosso de que se trata neste post é aquele que “se cava” entre a política e a vida.

Não somos apenas nós, cidadãos comuns, que o dizemos (sobretudo sentimos). São também, pelos vistos, alguns políticos como o deputado do PS Francisco Assis, que escreveu ontem no Público: “Quando entre a política e a vida se cava um fosso, tudo pode acontecer”.

Eu quero e preciso acreditar que ele, enquanto agente político, está a ser sincero e a trabalhar no bom sentido ou de boa fé para o bem comum.

Ele reconhece a “profunda distância que separa o discurso prevalecente na política do mundo concreto da vida”.

Ele sabe, ou finge saber, ou isso lhe interessa (maquiavelicamente) que, para nós, homens e mulheres comuns,  os discursos políticos já não significam nada, que são «montados» de “palavras ocas”. Assis refere-se sobretudo aos homens e mulheres “que se limitam a viver uma vida sem esperança, sem futuro, sem projecto, quase sem dignidade”.

“Tudo pode acontecer”. Tudo pode acontecer quando se cava um fosso entre a política e a vida. Já conhecemos muitos exemplos disso mesmo.

O fosso está cada vez mais profundo.

Mas nós, às vezes, damos uma ajudinha e não é só pelo voto…

Um exemplo: foram criados 1008 movimentos na sequência da iniciativa do governo «O Meu Movimento». Ideias boas e reveladoras de um interesse genuíno dos portugueses em melhorar este país. 

Um apenas foi recebido pelo PM (eles a cavar com toda a força): o movimento denominado «Abolição das Corridas de Touros». Teve mais de 8000 apoiantes (a nossa ajudinha). Não havia causas mais importantes a apoiar? Porque ganhou esta? O que se passa connosco? De que estamos à espera?

Não sou contra os touros, mas os portugueses estão a precisar mais de serem ouvidos e atendidos… Foi desperdiçada uma grande oportunidade.  Mais de 1000 pessoas registaram as suas preocupações através da criação do «seu» movimento, para depois ser selecionado apenas 1. Entre os 4 primeiros com mais apoiantes, 2 manifestam preocupação pelos animais…

Para quando uma audiência com os graves problemas das pessoas?

Uma vergonha.

Carta à mulher do presidente

(Já lá vão uns anos, mas é sempre actual )

Minha Senhora, estava eu a jantar quando vi no telejornal as imagens do bombardeamento sobre a aldeia de Korisa.

Imagens da vossa bravura, imagens da coragem e determinação do seu marido.

Corpos carbonizados, dilacerados, fumegantes, esventrados, cabeças estouradas, pedaços de vida feitos em pedaços de carne morta.

Cem pessoas abatidas e muitas outras feridas gravemente, enquanto o diabo esfregou um olho.

Cem inocentes que Deus sacrificou às mãos de quem tanto reza, cem refugiados a caminho da longínqua esperança, olhos postos no fictício horizonte da solidariedade humana. [Read more…]