A São solidária e a função diacrítica

Este recheio também é óptimo para tartes.
O Livro de Pantagruel

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Os excelentes Tradutores Contra o Acordo Ortográfico encontraram um belíssimo exemplo das consequências da base IV do Acordo Ortográfico de 1990. Ainda por cima, com potencial crase — não ocorrida e ainda bem. É a prova do crime (aliás, uma das provas do crime), ao cuidado dos incréus por conveniência.

Para quem não tiver Facebook, eis o vídeo publicado pelos Tradutores.

Muitos e bons (e.g., Castro, Duarte, Delgado Martins, Emiliano — e, deste rol, estou intencionalmente a excluir autores de ortografias autênticas, como os maravilhosos Gonçalves Vianna e Rebelo Gonçalves) indicaram a função diacrítica das letras c e p. Há uns anos, além de também me caber o papel de a indicar, dediquei algumas páginas a explicá-la, em publicação de referência, com revisão por pares (pdf). Desde então, até no Ciberdúvidas a função diacrítica (da letra c) chegou a ser mencionada. Mas sem consequências.

Fica o registo e ficam também os meus votos de uma óptima semana.

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Prà, prà, prà e desorientação ortográfica

 

Segundo o Sol, “João Villalobos ironiza com a infelicidade da associação ao passado”. Ora, já sabemos que “Prá frente Portugal” foi de facto uma infelicidade.

A exemplo de ‘à’ e ‘às’ ou de ‘ò’ e ‘òs’, recebem o acento grave certas formas que representam contracções de palavras inflexivas terminadas em ‘a’ com as formas articuladas ou pronominais ‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’(Bases Analíticas, XXIV). Estão neste número (…) ‘prò’,‘prà‘, ‘pròs’ e ‘pràs’, contracções cujo primeiro elemento é ‘pra’, redução da preposição ‘para’

(1947: 185)

Quanto ao resto, o PSD e o CDS, nas linhas de orientação, mencionam o facto de o Governo “nunca ter abdicado de uma perspetiva prospetiva“. Ora, é urgente que abdiquem da “perspetiva prospetiva“.

Em primeiro lugar, porque “perspetiva prospetiva“, em português europeu, corresponde a *[pɨɾʃpɨˌtivɐ pɾuʃpɨˈtivɐ] , em vez de corresponder a [pɨɾʃpɛˌtivɐ pɾuʃpɛˈtivɐ].

Em segundo lugar, porque “perspetiva prospetiva“, além de ininteligível em português europeu, põe em causa a tese da “ortografia comum“, sendo igualmente incompreensível para quem estiver habituado a ler, por exemplo, o CLG em português do Brasil (2006: 247):

perspectiva prospectiva

Em terceiro lugar, porque um dos resultados tangíveis da “perspetiva prospetiva” é a patente desorientação ortográfica nas linhas de orientação:  objectivos (p. 11) e objetivos (p. 13), “participação activa” (p. 12) e “presença ativa” (p. 12) — sim, exactamente, na mesma página —, excepção (p. 10) e excecional (p. 3) e, claro, Junho (p. 13).

Recomendo o abandono da “perspetiva prospetiva“, espero que  haja a tal “discussão mais focada sobre as matérias mais controversas” e desejo-vos um óptimo fim-de-semana.

Prà frente, Portugal

actual RTP

A propósito da base IX, 9.º, do AO90, lembrei-me das eleições presidenciais de 1986.

Durante a campanha, alguém terá dispensado a leitura do imprescindível Tratado de Rebelo Gonçalves:

A exemplo de ‘à’ e ‘às’ ou de ‘ò’ e ‘òs’, recebem o acento grave certas formas que representam contracções de palavras inflexivas terminadas em ‘a’ com as formas articuladas ou pronominais ‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’ (Bases Analíticas, XXIV). Estão neste número (…) ‘prò’, ‘prà‘, ‘pròs’ e ‘pràs’, contracções cujo primeiro elemento é ‘pra’, redução da preposição ‘para’

(1947: 185)

e

— Prà rua, que é sala de cães! — gritava ele…

(Aquilino Ribeiro, “Terras do Demo”, 1.ª parte, cap. VIII)

(apud 1947: 282).

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Isto é, em vez de “Prà Frente, Portugal”, adoptou-se

Contra o Acordo Ortográfico: as chamadas consoantes mudas

Uma das questões mais polémicas do AO90 está relacionada com a Base IV, em que se propõe a eliminação das chamadas consoantes mudas c e p nas sequências interiores cç, ct, pc, pç e pt, o que deverá acontecer sempre que, segundo o Acordo, essas consoantes não sejam proferidas “nas pronúncias cultas da língua” ou “numa pronúncia culta da língua”, para citar o texto.

Mesmo fazendo de conta que é possível identificar as várias pronúncias cultas da língua, a verdade é que mais do que um especialista tem defendido que as chamadas consoantes mudas têm, em contextos bem definidos, uma função diacrítica, isto é, desempenham relativamente à vogal que as antecede uma função semelhante à de um acento gráfico, para além de a sua existência derivar da etimologia. [Read more…]