Em Venosa

António Gil Cucu

Vencedor do Certamen Horatianum, aluno da Escola Rodrigues de Freitas, Porto

(Texto a ser publicado no Boletim de Estudos Clássicos)

Em Venosa, um mundo diferente. Já estou acostumado, em Portugal, aos olhares de dúvida e gozo, quando digo que estudo latim. “Isso não serve para nada”, e eu vou encolhendo os ombros. Em Venosa, tornou-se a coisa mais comum do mundo: italianos, búlgaros, austríacos e outros, todos estudam latim, como se de francês ou alemão se tratasse. Se, por um lado, fiquei contente, ao ver este diferente tratamento das clássicas, a banalização profunda do estudo do latim e do grego desapontou-me, pelo que, esperando uma certa atitude entusiástica, apenas tive um contacto mais intelectual com um dos alunos austríacos, o único com quem pude falar, de facto, em latim.

Venosa é uma vila que não chega a ser uma cidade por não ter mais espaço por onde crescer: a época do concurso deve ser a altura do ano que traz mais turistas ao lugar. Queixamo-nos bastante da questão cultural em Portugal e da degradação do património; pude, todavia, verificar que o mesmo se passa em Itália: visitei um museu, em Melfi, cidade vizinha de Venosa, e fascinei-me com a cópia de artefactos do neolítico, vasos e objectos dos gregos que há muito habitaram a Itália, objectos romanos e medievais, todo um património histórico desconhecido pela maioria dos italianos, tudo num castelo-museu que apenas conta com espaçadas visitas de alguns turistas mais curiosos.

Se já, durante a minha preparação para o concurso, eu tive sempre em mente que a possibilidade de ganhar, não sendo inexistente, era muito reduzida, o choque de Venosa veio acentuar mais esse sentimento. Eram pessoas com o dobro e triplo de anos de latim que eu tenho: embora os conteúdos leccionados sejam quase os mesmos, os outros tiveram muito mais tempo de os interiorizar. Nunca foi meu objectivo vencer o concurso, e acreditei mais nisto depois de ter feito a prova. E tudo teria valido a pena de qualquer maneira, pelo convívio com pessoas de diferentes países, o espírito de uma juventude dinâmica, o constante palrar em inglês e francês.

A prova do concurso era bastante concisa: uma ode, o exercício de tradução implícito e um comentário literário. Traduzi em verso, o que me levou bastante tempo: tínhamos quatro horas mais duas para realizar a prova, e eu gastei mais de metade desse tempo a traduzir e a arrumar, da melhor maneira possível, os versos. Ao acabar a tradução, olhei e li orgulhosamente o meu trabalho. Nunca tinha traduzido nada em verso, e a métrica, nem sempre regular, parecia-me satisfatória. O comentário já foi menos promissor: não tivera tempo de estudar muito profundamente os conteúdos temáticos de Horácio, embora pudesse falar dos principais. Terminei a minha prova cansado, indiferente à vitória, mas satisfeito. Este desaparecimento do fantasma da prova permitiu-me desfrutar os dias seguintes.

No domingo de manhã, deu-se a cerimónia de entrega dos prémios. O auditório estava cheio. Os austríacos, com quem eu e o meu professor passáramos mais tempo, estavam ao nosso lado, e eu sabia que haviam de ganhar alguma coisa, talvez mesmo o primeiro prémio. Começou a entrega das menções honrosas dos estrangeiros. Um dos austríacos ficou com uma. Em seguida as dos italianos. Agora os prémios: lá foi o segundo prémio para outro austríaco. “Pronto, acabou”, pensei eu, resignado, céptico, mas todavia tão feliz como dantes. Depois da entrega dos prémios italianos até ao segundo, chegou a altura de anunciar o vencedor dos estrangeiros. O professor Mario Lasala, presidente do júri, começou por dizer que o vencedor escrevera numa língua românica. E o meu cepticismo dizia: “lá foi um dos romenos”. Ele prosseguiu, descrevendo a resolução da prova, mencionando e elogiando a tentativa de versificação. “Eu também fiz isso”. Mas o professor disse que o aluno era de Portugal, e aí eu já não podia ter dúvidas, porque era o único.

O prémio trouxe-me, sem dúvida, grande alegria e também à minha família e aos meus professores. Foi, afinal, a recompensa por um difícil trabalho de estudo para que pudesse competir com os alunos estrangeiros e representar dignamente o meu país. Trouxe o prémio e espero ter renovado as forças e esperanças daqueles que lutaram e lutam pelas clássicas. Sinto, no entanto, pela taciturnidade do nosso Ministério da Educação, que esta vitória não bastará para resolver a deplorável situação do latim. Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado.

Comments

  1. palavrossavrvs says:

    A citação final do Manifesto AntiDantas resume o olhar bovino do Ministério perante o Tesouro Cultural e Linguístico que é o Latim Clássico, escola de lógica e estruturador do pensamento, olhar bovino deste Ministério e dos que o precederam.

    Um dia proclamar-se-á tal negligência qualquer coisa de criminoso e imperdoável. Se todos fossem como eu, haveria tal munição de manguitos que levaria dois séculos a gastar..

  2. Quem é este António Gil Cucu? Quem é este desordeiro que ganha “lá fora” concursos em e de latim e quer representar “dignamente o meu país”? Que atrevimento é este de vir perturbar a nossa mediocridade baça? Quem é este agitador que fala em latim com um austríaco, mas tão português que pensa que o primeiro prémio é para os outros e na vitória quase como uma transgressão? Quem é este que “não tivera tempo de estudar muito profundamente os conteúdos temáticos de Horácio” e estava preocupado com isso?
    Que atrevimento é este de ter, por nós, as preocupações que não temos e nos faltam?
    Não me parece boa rês!
    E que estultícia, a de de interromper o secretário viegas, que burila mais um artigo sobre futebóis e terá (tem?) agora de pensar em algo mais para além do reles!
    Quem é este que me importuna o meu impoluto pessimismo?

  3. maria celeste ramos says:

    ai que xatice

  4. Gostaria de pedir ao Professor Jorge Moranguinho, ajuda para traduzir a frase «Prelumas Cesianum».
    Esta frase encontra-se inscrita num painel de azulejos que assinala a existência de uma antiga tipografia numa rua de Leiria.
    Caso seja possível obter esta informação, fico-lhe desde já grato.
    o meu endereço electronico é: m.frederico.52@gmail.com

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