Xeque ao ensino: o meu cheque-ensino é melhor do que o teu

escolaImaginemos uma pequena povoação em que existam três escolas, uma privada e duas estatais. Para que o cenário fique, apesar de tudo, verosímil, será importante afirmar que a primeira, ao longo dos anos, tem sido sempre a mais bem classificada nos rankings. Não reflictamos, para já e novamente, sobre as virtudes ou os defeitos dos ditos rankings, mas não esqueçamos, a bem da verosimilhança, que a escola privada tem sido frequentada, ao longo dos anos, por filhos de pessoas de estatuto socioeconómico elevado, uma vez que as mensalidades não estão ao alcance de todas as bolsas.

Entretanto, as duas escolas estatais têm sido frequentadas por jovens cujas famílias não têm possibilidades de os matricular na escola privada ou não estão interessadas nisso, o que pode acontecer por desinteresse ou por confiarem que os filhos podem ter acesso a um ensino de qualidade sem que isso dependa da frequência da escola privada. Aproveitemos, de qualquer modo, para fingir, por momentos, que o estatuto socioeconómico ou sociocultural não tem influência no rendimento e nos resultados escolares dos alunos.

Num país em que os rankings se transformaram, mal ou bem, num critério quase único para se avaliar a qualidade de uma escola, é natural que a maioria dos encarregados de educação da nossa pequena povoação gostasse de ver os filhos entrar na “melhor escola” da terra, ou seja, a privada. Por outro lado, o lugar nos rankings, mal ou bem, passou a ser uma preocupação das escolas, pelo que a privada tem recorrido, sempre que necessário, à selecção de alunos, preferindo os que possam garantir melhores resultados e convidando a sair os que acabem por ter um rendimento escolar mais baixo ou que tenham problemas de comportamento, ao contrário das estatais cuja autonomia é menor e cujo espírito é o de tentar integrar todos os alunos, independentemente das limitações e dos problemas.

Para que seja mais fácil fazer contas, estipulemos um número redondo, mesmo que isso nos custe alguma verosimilhança. Na pequena povoação, temos, então, seis mil alunos. Para que tudo fique arrumado, façamos de conta que cada escola tem capacidade para dois mil alunos.

Em nome da liberdade de escolha, o actual governo irá conceder a todos que o desejem, um cheque que colocará, dizem, todos os alunos em pé de igualdade. Munidos desse cheque, os pais poderão, agora, inscrever o filho na “melhor escola” da terra.

Há muito, ainda, por dizer sobre isto, mas, por hoje, lancemos algumas dúvidas, interroguemos e interroguemo-nos. Deixemos a estratosfera do governo e regressemos à nossa povoação imaginária.

Suponha-se, então, que a escola privada é demandada por um total de cinco mil alunos, já para não exagerar e deixar de fora mil que não se querem mexer.

Estando todos os pais na posse do igualitário cheque-ensino, que critério irá a direcção da escola utilizar para recusar a entrada de três mil alunos? Será por ordem de chegada? Poderá a dita escola privada continuar a fazer a selecção de alunos, tendo em vista a classificação nos rankings? Terá a mesma escola o direito de expulsar sumariamente um aluno que, por alguma razão, se torne desagradável? Nesse caso, o que acontecerá ao cheque-ensino?

E os três mil alunos finalmente rejeitados ficarão, assim, privados de uma educação de qualidade, apesar do cheque-ensino? Será justo impedir um aluno de frequentar a escola privada, porque o pai teve um furo a caminho da inscrição e as vagas ficaram todas preenchidas? Ou será aceitável a escola privada recusar um aluno por ter tido uma média mais baixa ou ter tido alguns problemas disciplinares? Será que, mesmo contendo a mesma quantia, nem todos os cheques-ensino valem o mesmo?

Muitos crentes nas virtudes imaculadas das leis do mercado têm algumas respostas que consideram óbvias: a concorrência entre as escolas, no afã de angariar os clientes anteriormente conhecidos por alunos, causará evolução, melhoria, enfim, um futuro radioso.

Sendo eu um homem de muita fé, embora com alguma dúvidas, ouso perguntar: e se as “piores escolas” continuarem más, ou seja, se a classificação nos rankings se mantiver baixa? Se isso acontecer, deverá o Estado intervir, em defesa dos alunos que não conseguiram entrar na privada, tentando que os resultados melhorem, mesmo sendo certo que a expressão “Estado intervir” é contrária às leis do mercado? Ou deveremos conformar-nos e perceber que a vida não é mais do que um mercado, uma selva em que só sobrevive o mais apto ou o mais rico?

A verdade é que a maioria destas perguntas não tem importância. Nos próximos episódios desta novela em que os mercantilistas da Educação se limitam aos simplismos de quem não se preocupa, procuraremos relembrar a importância do meio nas aprendizagens dos alunos, a interpretação perversa dos rankings ou o modo como o Ministério da Educação se dedica a destruir, metodicamente, as condições de trabalho nas escolas estatais. É já a seguir.

Comments

  1. Aurora says:

    Concluindo, os impostos da maioria dos pais cujos filhos frequentam o ensino público, financiam uma elite, onde não cabem os próprios filhos:)

  2. Carta ao prof. Nuno Crato
    Seria possivel em nome do rigor, da justiça e da lei, colocar mais umas dezenas de professores e acabar com as turmas em “inconformidade” (com 24,25,26… e mais alunos e ainda alunos com NEE’s).
    Suponhamos que Mário Nogueira voltava a lecionar e apanhava uma dessas turmas? Será que têm tido o cuidado de não atribuir essas turmas a quem se possa defender?
    Em nome dos professores com alunos em excesso peço ao professor que faça cumprir a LEI.

  3. Isto está cada vez melhor ??? Será do capitalismo selvagem e do neo-liberalismo bacoco ??? Já ninguem sabe ler e ver os resultados a que tudo isto chegou ???

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  1. […] No texto anterior, referi, de passagem que o critério que a opinião pública utiliza para avaliar as escolas está limitado aos rankings: segundo esta teoria (que é, na realidade, um reflexo), uma escola é tanto melhor quanto mais perto estiver dos primeiros lugares. Dito de outra maneira: o único critério para avaliar a qualidade de uma escola estaria nos resultados que os respectivos alunos obtêm nos exames. A imposição de exames nos finais de todos os ciclos de ensino contribuiu para aumentar a obsessão com os rankings. […]

  2. […] No texto anterior, referi, de passagem que o critério que a opinião pública utiliza para avaliar as escolas está limitado aos rankings: segundo esta teoria (que é, na realidade, um reflexo), uma escola é tanto melhor quanto mais perto estiver dos primeiros lugares. Dito de outra maneira: o único critério para avaliar a qualidade de uma escola estaria nos resultados que os respectivos alunos obtêm nos exames. A imposição de exames nos finais de todos os ciclos de ensino contribuiu para aumentar a obsessão com os rankings. […]

  3. […] ou por sentir mais dificuldades em vender o seu produto. No mundo das escolas, imaginando que as melhores não poderão absorver todos os alunos, o que deverá a sociedade fazer se as piores não melhorarem? Poderá a sociedade abandonar à sua […]

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