Autor convidado: Cristina Torrão

Cristina Torrão

O meu 25 de Abril

A aula não tinha começado há muito tempo, quando a professora foi chamada à Diretora. Ao regressar, lançou, muito aflita, a caminho da sua secretária e sem olhar para nós, as suas alunas da 3ª classe:
– Ide para casa, hoje não há escola!
Além de ansiosa, parecia muito irritada. Nós perguntávamo-nos se tínhamos aterrado no filme errado. Aquele dia havia começado igual aos outros e, de repente, dava-se uma viragem que não estava prevista no guião. Tínhamos acabado de chegar, de abrir os cadernos e os livros, de afiar os lápis… E porque estava a professora tão nervosa?
– Não me ouvistes? Guardai as vossas coisas e ide embora!
Já muito inquietas, desejávamos uma explicação daquela em quem confiávamos. Mas ela, atrás da secretária, arrumava os seus pertences, ruminando:
– Isto até pode dar em guerra… Não sei. Não sei o que se vai passar. Uma chatice, uma grande confusão!
Desandou dali, abandonando-nos à nossa sorte.
Ninguém nos deu mais explicações. Os alunos das outras classes também tinham sido mandados embora, o que só serviu para aumentar o nosso receio. Devia estar para acontecer uma catástrofe!
Fiz-me ao caminho de casa na companhia de duas meninas. A professora falara em guerra… Começámos a divagar sobre guerra, as imagens da guerra do Ultramar eram-nos familiares. Das rajadas de metralhadoras e do arremesso de granadas, passámos para as bombas lançadas dos aviões.
– Lançam aquelas bombas, para cima das casas…
Estávamos precisamente a chegar a minha casa. E só naquele momento me lembrei de que talvez ninguém lá estivesse. Não sabia se a minha mãe já regressara da reunião. Também a teriam mandado de volta, por causa da guerra?
Rodei a chave na fechadura, aterrorizada, rezando para que encontrasse alguém em casa.
Chamei, mas ninguém respondeu.
Fiquei numa hesitação, entre entrar e sair, à procura de quem soubesse dar respostas às muitas perguntas que me surgiam na cabeça; de quem me aplacasse os medos. Mas não sabia a quem recorrer e não podia ir assim, pela rua, interpelar desconhecidos.
Fechei a porta, a pensar: não podem demorar muito, com certeza que são todos mandados para casa. Pois se está a começar uma guerra…
Sentei-me no hall da entrada, bem perto da porta, com a pasta da escola a meus pés, incapaz de avançar pela casa, tolhida de medo.
Quando este se tornou insuportável, pensei:
«Tenho de fazer alguma coisa que me faça esquecer as bombas».
Por entre as lágrimas, o meu olhar pousou numa mesinha que continha revistas. E foi lá que vi a minha salvação: os dois fascículos da Simplesmente Maria! Achei que só as cenas dos beijinhos da Maria com o seu marmanjo seriam capazes de tal proeza.
Finalmente podia ver e ler aquilo em paz, à socapa da «comissão de exame prévio» lá de casa. Hoje em dia, as imagens nem sequer mereceriam o epíteto de inofensivas, de tão ridículas. Mas ter oito anos, em 1974, significava ficar empolgada com os lábios da Maria ligados aos do seu marmanjo. E a Maria fechava os olhos para melhor gozar aquele prazer.
E deu-se o milagre! Um milagre que, aliás, só podia ser obra do diabo: esqueci-me das bombas. As lágrimas secaram-se-me na face e deixei de dar conta do passar do tempo. Apesar da professora estúpida, o 25 de Abril começava a exercer a sua ação sobre mim, liberta da censura materna, um 25 de Abril que ainda nada tinha a ver com cravos, MFA e povo unido. O meu 25 de Abril eram as imagens proibidas da Maria da radionovela aos beijinhos, a fazer um bebé com o seu marmanjo.

Comments

  1. adorei
    A ditadura familiar é talvez a pior das opressões 😉

Trackbacks

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