Obituário de um escritor-fantasma

Manuel da Silva Silva não precisou de perder tempo com a escolha de um pseudónimo porque nunca deixou de ser um escritor-fantasma. Passou anos aprisionado a textos sem graça – manuais, recomendações técnicas, bulas – escritos a contragosto, por necessidade, mas a sua sorte haveria de mudar quando lhe chegou a encomenda de um texto inovador, um artigo escrito de um ponto de vista inaudito, e que haveria de ser o primeiro de uma longa série. Tinha por título “Eu sou o fígado da Maria” e foi um sucesso imediato. A partir de então especializou-se em dar voz a vísceras, glândulas, válvulas, artérias, descrevendo com alucinante rigor e meticulosa fidelidade a vida oculta e esquecida de quantos órgãos constituem o corpo humano.

Passou a receber cartas extensíssimas de hipocondríacos de todo o mundo, reconhecidos e apoquentados, que lhe contavam sintomas e o urgiam a que dedicasse o próximo texto a outro órgão, invariavelmente aquele que os trazia mais ralados. Da Silva Silva fazia pesquisa, consultava médicos, frequentava hospitais, mas gostava particularmente de ficar frente a frente com o seu protagonista – o robusto coração, a volúvel vesícula, a paciente bexiga, a insondável tiróide – e explorar todo o palpitante potencial criativo que outros haviam ignorado.

“Escritor de glândulas”, chamavam-lhe os rivais. Mas nem isso o abatia. Nem só de Kareninas vive a literatura, costumava dizer. Teve uma vida longa e uma carreira de sucesso, ainda que nunca tenha saído do anonimato. Esgotadas as vísceras, dedicou-se aos ossos, em seguida aos músculos. Nos últimos anos de vida, delirava com a possibilidade de narrar a sua própria autópsia. Morreu hoje, sem que o seu obituário tenha ocupado a página de nenhum jornal. A vida será sempre injusta para os escritores-fantasma, ainda mais se se dedicam a glândulas.

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