O que é a Cultura para o projecto governativo de António Costa?

Li com atenção o discurso que António Costa proferiu no Porto em 6 de Junho passado. Detenho-me aqui brevemente no (pouco) que disse sobre a Cultura. Costa afirmou estar empenhado «em voltar a investir na Cultura, que considera, de par com a Ciência, uma das «bases da sociedade do Conhecimento, condição de uma sociedade de iniciativa, criativa, inovadora, capaz de vencer, tanto na sofisticação do software de última geração, como na revalorização dos produtos tradicionais, produzidos nos territórios de baixa densidade, ou em novas industrias internacionalmente competitivas.» Fico preocupada com isto, pois para além de ser muito pouco, revela aquele que é um dos actuais males da (parca, reduzida à gestão de fundos cada vez mais ridículos) política portuguesa para a área da Cultura.

A Cultura não precisa que o Estado se preocupe por ela com o software de última geração (nem a Ciência, certamente). Software de última geração há muito, e incessante – os mercados das industrias tecnológicas tratam muito bem de tudo isso, e Portugal está cheio de óptimos engenheiros e programadores, e tem-se até notabilizado por boas práticas e pequenos grandes sucessos nessa área. O que define uma política para a Cultura não é a tecnologia. O que a torna central numa sociedade civilizada é a possibilidade, mediante um conjunto de vontades políticas e financeiras, de preservar uma memória (identitária, artística, histórica, política), a possibilidade de permitir o desenvolvimento pleno e contínuo da criação artística (em todas as suas vertentes e ofícios), e a possibilidade de proporcionar às populações (independentemente da sua densidade demográfica) o acesso à fruição da arte – que na sua génese e essência é e será sempre o contrário do entretenimento, pois serve para pensar, e é o contrário do esquecimento.

Uma política para a Cultura não tem nada que ver com «produtos» (tradicionais ou modernos), nem serve na raiz para torná-la «internacionalmente competitiva». Para isso temos já o Fado e a Joana Vasconcelos, e uma quantidade óptima de pontes (objectivadas em parcerias, algumas de vertente tecnológica, e em patrocínios) que paulatinamente se têm vindo a estabelecer entre as artes e as indústrias, e à falta do que muitos mais agentes culturais teriam desaparecido. Do que a Cultura precisa é de um conjunto alargado de políticas que tomem verdadeiramente conta do que existe e favoreçam a criação e a fruição culturais.

De decisões políticas corajosas passíveis de agir sobre aspectos tão diferentes como a preservação continuada da memória (património de formas múltiplas) do legado cultural nacional, aspecto fulcral no quadro da globalização uniformizadora que age também sobre a criação e os consumos culturais; a Língua, com uma política para ela que comece desde logo pela reversão urgentíssima da aplicação (antes sequer de ser lei) do Acordo Ortográfico de 1990 (acordo que Portugal fez com ninguém, uma vez que nenhum dos outros Estados falantes da Língua aceitou assiná-lo) – lamentável iniciativa que tem vindo a transformar a Língua portuguesa numa «coisa» disforme e errática (vide o texto do discurso de António Costa, em que algumas palavras surgem acordizadas e outras não), com consequências especialmente devastadoras para o Ensino (o do Português e de tudo o mais) e para a Edição; a orçamentação de uma percentagem minimamente digna do OE para a Cultura (há quem reclame 1%), desejavelmente acompanhada da reposição do Ministério da Cultura – necessidade muito mais que simbólica, sobretudo se puder corporizar a inflexão do actual caminho de desinvestimento público, e ser também uma voz activa, crítica e construtiva no contexto do actual programa comunitário em vigor até 2020 (demasiado centrado nas «indústrias criativas» e insuficientemente nas artes e no acesso à fruição cultural), dessa forma sendo capaz de mobilizar as necessárias vontades: políticas umas, e financeiras outras.

Comments

  1. Ferdinand says:

    “O que é a Cultura para o projecto governativo de António Costa?”

    Isto é o que a mais preocupa sobre o PS e António Costa?

    Encontro questões às quais é absolutamente essencial esclarecimento imediato por parte da elite “socialista”.

    Gostava de saber como é que o PS vai executar uma política “patriótica de esquerda” sem soberania monetária.

    Gostava de saber o que vão fazer em relação à natureza anti-democrática da U.E, sendo os socialistas co-responsáveis por a anti-democracia crescente na Europa…

    Gostava de saber o que o PS vai fazer à banca privada falida, a qual a sociedade é obrigada a sustentar embora seja um gigantesco parasita que obriga a doses intermináveis de “austeridade”, Quantos mais BPNs (e criminosos) os socialistas vão salvar?

    Sim, a cultura é muito importante, a sociedade do conhecimento idem, muitos “likes” a tudo isso, agora, como é que estas importantes questões podem ter desenvolvimentos positivos sem se resolver questões essenciais que se arrastam há já algum tempo?

    • Sarah Adamopoulos says:

      Num blog, cada um faz e escreve o que pode e a mais não é obrigado. A Cultura é para mim muito importante e bastante mais essencial do que as suas palavras deixam transparecer. Escrevo sobre o que sei e me preocupa mais. Por que não analisa e escreve – sobre o discurso do Costa, por exemplo – e propõe um texto para publicação? Ao que sei o Aventar continua a aceitar propostas de colaborações. Sempre era mais interessante do que deixar comentários anónimos, não concorda?

      • Ferdinand says:

        E por isso escrevi isto:

        “Sim, a cultura é muito importante, a sociedade do conhecimento idem, muitos “likes” a tudo isso, agora, como é que estas importantes questões podem ter desenvolvimentos positivos sem se resolver questões essenciais que se arrastam há já algum tempo?”

        Os problemas que descrevi não são indissociáveis da “Cultura”. Não pense a Sarah que a “Cultura” e outras áreas vão ter algum rumo que preste, se é que terão algum rumo, enquanto continuarem os ataques à democracia, ataques à dignidade, liberdade e até subsistência do cidadão comum…

        Não se preocupe Sarah, não quero roubar o direito de escrever o que bem entender, embora ache o que escrevi têm justificação.

      • Ferdinand says:

        E o meu nome é Fernando Eusébio, e fico satisfeito de comentar apenas no espaço de comentários.
        E vou continuar a apresentar-me aqui no Aventar como Ferdinand porque é assim que eu quero.

        E se o António Costa quiser, não me importo de lhe fazer algumas perguntas… em directo na TV. Seria um bom momento televisivo! Mas isto nunca vai acontecer por razões que fogem ao meu controlo. Dou-lhe a minha palavra, se eu visse que isto era possível não me importaria de perder o meu estatuto de anóimo perante o país e todo o youtube…

  2. Comentar o quê ??

  3. Ana Maria says:

    Não conheço mais nenhum país do mundo onde Cultura seja quase um sinónimo exclusivo de Artes e Espectáculos. E onde também se considere que a principal fonte de receitas dos ditos artistas tenha de vir obrigatoriamente do erário público.

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