A uma heroína anónima

Fotografia retirada da página online do Público

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Não ficará para a História da nação.

Ficará certamente na pequena história familiar, talvez a mais importante de todas, e principalmente na história dos quatro irmãos mais novos que salvou antes de voltar a entrar naquele maldito apartamento e o seu corpinho ser, desafortunadamente e injustamente, roubado de toda a vida. Será falada na família como uma heroína. Será contada aos sobrinhos que talvez lhe venham a dar e que nunca chegou a conhecer, da forma falaciosa que as nossas memórias nos fazem reviver momentos passados.

É verdade, desta menina a História nunca rezará e, no entanto, ela fez algo que muitos adultos não fariam. Soube dela através de uma rede social, pela escrita do meu compadre. Li e compadeci-me com a injustiça de tudo isto. Decidi naquele momento que escreveria sobre esta menina, mas faltam-me as palavras. O pouco que sei a seu respeito, li-o nas notícias que se fizeram sobre esta tragédia. Li aqui, aqui e aqui. Li em blogues. Procurei informação. Há muito pouca. Hoje li um desabafo de uma pessoa tão chocada como eu, que se insurgia contra o silêncio em volta desta morte prematura e desnecessária.

Não sei o que dizer. Se, como tudo o que li indica, esta menina e os seus irmãos são filhos de uma família desestruturada, se são vítimas de negligência, se, como algumas vizinhas testemunharam, este desfecho estava previsto mais cedo ou mais tarde, é toda a sociedade que falha. Falharam os mecanismos de apoio a esta família ou a estas crianças.  Os sobreviventes terão, talvez, agora a atenção e os cuidados que deveriam ter tido há mais tempo. A pequena heroína, essa, terá vivido para salvar a família e mais nada. Nenhuma justiça lhe poderá ser feita jamais.

O tal silêncio que incomoda poderá ser o resultado deste mau-estar colectivo. Estamos todos implicados. Hoje (na 6ª feira) foi ela, mas quantas crianças há, até perto de nós, nas quais nem sequer reparamos no dia-a-dia? Acontece uma tragédia destas e sentimos-lhe o peso. Sentimos que algo deveria ter sido feito. Sentimos que falhámos.

Quando morre uma criança com cancro ou outra qualquer doença horrível e fatal, é fácil sermos solidários, enveredarmos por manifestações bonitas e poéticas. É fácil escrevermos mensagens de esperança, partilharmos estados bonitos e bem escritos do Facebook. Nestes casos, estamos de consciência tranquila. Ajudámos no que podíamos, com mensagens de força e coragem, com dinheiro, simplesmente (para quem acreditar) rezando. As pessoas sentem que fizeram algo, mas que a inevitabilidade da morte foi mais forte, mesmo que tendo chegado cedo de mais. A morte chega sempre cedo de mais para todas as crianças que se vão deste mundo. Num caso como o da Samira (não sei se era de facto este o nome dela, mas li-o numa das notícias), poucas pessoas fizeram alguma coisa. Os vizinhos, talvez, que apresentaram queixa à CPCJ ou à Segurança Social. Mas os mecanismos de protecção destas crianças, que deviam funcionar como uma engrenagem bem oleada, falharam. Como certamente falham muitas vezes. Quase que aposto, até, que falham cada vez mais. Porque este país é cada vez menos para jovens em situação de risco, ou simplesmente para jovens sem amigos importantes, do mesmo modo que este país não é para velhos, nem doentes, nem deficientes.

E tenho a certeza que a justiça também não será para esta heroína que perdeu a vida salvando os irmãos. Mesmo que fosse feita justiça, ela nunca seria realmente feita, mas quase aposto que nem essa justiça de tribunal chegará alguma vez à família que perdeu uma das suas. Mais uma vez, estamos perante um infortúnio, uma tragédia e nada daqui sairá. Fiquemo-nos pela lamúria.

Descansa em paz, pequenina!

 

Comments

  1. José Neto says:

    Queria comentar, mas não consigo. Nenhumas palavras são dignas face à coragem, ao amor, ao gigantismo da pequenina

  2. Joam Roiz says:

    Pois eu comento. Este “choro social” ou é fruto da hipocrisia ou da ignorância. É que nem todos são responsáveis. São responsáveis, sim, aqueles que continuam a acreditar na democracia burguesa e a conformar-se (votando) nos partidos políticos ditos “socialistas”, sociais democratas ou neo-liberais, todos eles, em maior ou menor grau, lacaios do grande capital económico e financeiro. Afinal, parece que todo este povo, “manso” como um rebanho de ovelhas, continua a acreditar que os comunistas comem criancinhas ao pequeno almoço. É verdade que o nosso dito “partido comunista” (PCP) também em nada ajuda, pois de comunista já pouco tem, aburguesados que ficaram a maioria dos seus dirigentes, agora felizes e contentes com as migalhas (os lugarzinhos de deputados e de autarcas), que o sistema político vigente lhes dá. São eles os verdadeiros responsáveis pela “moleza” das massas populares que controlam através do movimento sindical, impedindo-as de manifestar verdadeiramente nas ruas a sua justa revolta. Um novo partido comunista verdadeiramente anti-capitalista e revolucionário, preparado e capaz de lutar na frente “legal” e, quando necessário, fora dela, precisa-se. Quanto à menina, heroína e vítima ao mesmo tempo, que o seu exemplo sirva de ânimo para todos os que lutam por uma sociedade nova, cada vez mais igual, justa e fraterna. Para que não nos fiquemos todos, apenas, pela lamúria.

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