Foi o Adão quem me falou do Minititanic, e até mo mostrou, em certa tarde soalheira. Um barquito pequeno, arruinado, ancorado na margem do Douro. Um barco de quatro ou cinco metros com um nome imenso, apesar do (falso) prefixo. Se continua ali, encostado à margem, como se ainda tivesse futuro, é porque o dono, um velho pescador, não o abandona. Todos os dias à volta dele, a limpar-lhe as cagadelas das gaivotas, a consertar uma tábua, a fazer-lhe um remendo inútil, como todos os remendos que ainda se possam fazer naquela carcaça, e a amá-lo, a amá-lo como não sabemos se terá amado alguém de carne e osso, porque no barco despejou tudo o que foi, tudo o que fez, tudo o que dele ficará no mundo. O homem dirá ainda, a quem ainda o escutar, que um dia destes faz-se ao mar outra vez, que o barco ainda aguenta, que estão os dois rijos. E ouvirá risadas de resposta, ou só um assentimento amável, para quê contrariar um pobre homem?
Minititanic, tão pouco invencível como o outro, conseguiu pelo menos chegar à terra. Morrer em terra é morrer todos os dias, aos bocadinhos, mas também é ver o sol a pôr-se e outra vez a nascer. E pensar que sim, ainda se verá o próximo.
Desde que os conheço que penso que se homem e barco tiverem amigos, amigos daqueles que se ocupam também da nossa morte, talvez estes possam tratar de dar-lhes a melhor despedida possível, quando a hora chegar. E essa, quanto a mim, que nada sei, seria um funeral à maneira dos víquingues. Um barco a arder nas águas, um corpo incinerado. Homem e barco unidos nas mesmas cinzas, por fim feitos mar. O Minititanic haveria de romper as águas com a solenidade que a sua pobre carcaça nunca teve, as primeiras chamas a erguerem-se, um lampejo, e já na foz do rio, em labaredas, incandescente, gloriosamente afundar na água fria. Já sei que as autoridades não permitirão, nunca permitem, para quê perguntar-lhes?
Mas que não seja já, que dure ainda o ritual dos pregos no convés, do remendar de redes, que se ponha o sol e novamente nasça, que um Minititanic é também o que nós somos, míseros e gigantes contra as águas.
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