From Russia, with love #4 (Moscow)

 Visitei hoje o Camarada Lenine…

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… e encontrei-o com bom aspeto e boas cores, sobretudo para quem está morto há 93 longos anos. O Camarada Lenine repousa num feíssimo, escuro e frio mausoléu no centro da Praça Vermelha. Quero dizer, aquilo que resta do Camarada Lenine, praticamente pele e ossos, repousa no mausoléu bem no centro da Praça Vermelha. Não tem sangue, nem cérebro, nem vísceras, mas suponho que não lhe façam falta nenhuma, assim como assim. De 18 em 18 meses o corpo é retirado do mausoléu e submetido a diversas operações de conservação*. Li algures que lhe limpam e passam o fato também nessa altura e que de três em três anos lhe compram um novo. Parece que custa muito dinheiro à Federação Russa manter o corpo de Lenine.

O mausoléu está aberto apenas 3 horas por dia, excepto à segunda-feira, entre as 10h e as 13h. De maneira que, como me levantei às 10h30 pensei que não seria hoje que veria o Camarada Lenine na sua morada, aparentemente final. Fiquei aborrecida comigo mesma quando saí do hotel às 11h30 e cheguei à Praça Vermelha uns 10 minutos antes do meio dia. A fila para entrar no mausoléu era praticamente interminável. Apesar do que li no meu guia sobre o modo como na Rússia são tratados os cidadãos portadores de deficiência, lá tirei o cartão de estacionamento português da mala e o mostrei ao guarda mesmo no início da fila. Para meu espanto, deixou-me entrar imediatamente, passando à frente das centenas de pessoas que já deviam estar ali há imenso tempo. Não me importei com elas. Afinal, doiam-me mesmo os pés. Entra-se no mausoléu depois de percorrer algumas filas de campas nos muros do Kremlin. Entram poucas pessoas de cada vez e o ambiente é ligeiramente (para ser simpática) aterrador. Da luminosidade e efervescência da praça (têm estado uns dias incrivelmente bonitos e quentes em Moscovo) passa-se num segundo, mal se atravessa a porta, para um lugar escuríssimo e frio. descemos umas escadas e entramos na sala onde, dentro de um caixão de vidro, com as faces rosadas e os olhos fechados, no seu fato de seda, repousa Lenine.
Pensei que seria mais estranho do que foi ver Lenine embalsamado. Na verdade, apesar de apenas ter estado 5 minutos a olhar para ele, com os guardas, sérios, a mandarem-nos prosseguir, pareceu-me um boneco de cera. Na verdade, tive pena daquela figura preservada há 93 anos, não se sabe exatamente para quê. Li que Lenine gostaria de ser enterrado. Não este, mas o que estava vivo, quando morresse. Em vez disso, está há 93 anos o seu corpo em exposição. Atualmente mais que isso. É uma atração turística. Se pudesse ainda pensar, não sei que pensaria o Camarada Lenine do que lhe fizeram. Talvez gostasse de estar sepultado, como está Estaline, cá fora, sob a terra, com uma lápide e um busto seu, cravos vermelhos de plástico. Talvez alguém lhe deixasse flores frescas todos os dias. Assim, nem uma flor lhe podemos dedicar. É triste. Não Lenine estar morto (seria impossível que estivesse vivo). Mas esta solidão do seu corpo exposto aos olhares famintos dos turistas. Sei bem que não posso falar muito, porque também eu lá fui visitá-lo. E não gostei.
Cá fora estão sepultadas ao longo dos muros do Kremlin que dão para a Praça Vermelha várias personalidades políticas e não só. Encontro a campa de Estaline. Tem os mesmos cravos vermelhos de plástico que se encontram junto das outras campas e placas no muro. O governo russo gasta demasiado dinheiro com o Camarada Lenine e não terá dinheiro para flores frescas. Compreende-se. Mas uma vez mais é triste. As flores de plástico são tristes e falsas como o cadáver de Lenine na sua cave escura. Apenas Estaline e Gagarin têm flores frescas. O último uns belos cravos vermelhos. Estaline, cravos roxos. A calma daquele rectângulo junto ao muro do Kremlin em plena Praça Vermelha é impressionante.
Saio dali a pensar no Camarada Lenine. A pensar que não há nada de muito diferente entre aquilo que vi e a adoração a santos e milagres. É paradoxal, de verdade, mas é assim. Vou devagar até ao meio da praça e respiro fundo enquanto rodo lentamente. Que bom estar viva, caramba, no dia 3 de agosto de 2017**, 93 anos depois da morte de Lenine, no meio da Praça Vermelha, em Moscovo. Quando morrer quero ser cremada. De qualquer maneira também ninguém me embalsamaria e isso, parecendo que não, diante do que acabo de ver, é um alívio. Dali vou (devagar também) até ao túmulo do soldado desconhecido. É quase 1 hora da tarde e sei que, de hora a hora, a guarda se rende.
No túmulo do soldado desconhecido as flores são verdadeiras. Há uma chama que arde permanentemente e dois rapazinhos vestidos de soldados. Hão de ser rendidos por outros, quase iguais. Na placa que diz Estalinegrado estão duas rosas amarelas, mais há frente encontro um pequeno ramo de cravos vermelhos. Que bom estar viva e respirar! Sento-me num banco a ver os pardais e os pombos e outros pássaros que também estão vivos e fazem questão de o mostrar. Quando me levanto dirijo-me para a entrada do Museu do Kremlin, apreciando calmamente as flores nos canteiros, as nuvens fofas no céu e o sol. Depressa me dou conta que hoje o Kremlin se encontra fechado! Esta viagem está muito mal organizada, penso, nem sequer me informei sobre o dia de de encerramento do Kremlin! Desapontada volto para trás e sento-me noutro banco do jardim. Como um gelado de chocolate à laia de almoço e que bom estar viva, outra vez.
Decido ir à Moderna Galeria Tretyakov que ontem não visitei e que fica no Museu-Parque das Artes, o mesmo onde estão as estátuas dos ‘heróis’ caídos. A galeria exibe, neste local, obras de artistas soviéticos (com raras exceções) do século XX. Estou particularmente interessada no ‘realismo soviético’ e não fico desiludida com a visita. A começar pela arquitectura do edifício, muito ao estilo ‘soviético’ e acabar nas exposições. Chego lá, de autocarro (M1) por volta da 1h30. Depois de ter passado mais de duas horas no interior da Galeria, vou para o pátio do museu, bonito e refrescado pelo vento. Há um sossego imenso, ao longe ouvem-se crianças. Que bom estar viva, sentada numa cadeira no pátio da Moderna Galeria Tretyakov, a fumar um cigarro, a beber um café, a ouvir as vozes das crianças, a respirar. Deixo-me estar um grande bocado assim. E sou feliz.
São quase cinco da tarde quando saio pelo lado oposto, o que dá para o rio. Percebo imediatamente os risos e as vozes das crianças. Há uma longa fila de repuxos e elas correm entre eles, tomam banho neles e são felizes e estão definitivamente vivas. Vou depois, a pé, sempre junto ao rio até à ponte Patriarshiy, para ir até à Red October Chocolate Factory que havia já avistado do barco e do autocarro turístico. Foi uma fábrica, agora é um centro cultural e alternativo, um pouco com a Lx Factory em Lisboa e tantas outras em tantos lugares do mundo. Falta-lhe, à Red October, uma Ler Devagar. Ando por ali, a ver os edifícios e os grafitis. Depois bebo uma cerveja num bar simpático. Continuo a andar (sempre devagar) ao longo do rio, não sei quantos quilómetros até perto do hotel. Doem-me muito os pés e páro muitas vezes para descansar enquanto contemplo a paisagem e penso, quase na altura de a deixar, em como é bonita a cidade de Moscovo, apesar das obras em toda a parte, do pó, do trânsito alucinante e do barulho. Uma cidade viva, Moscovo, feita para os vivos de hoje e para os vivos que hão de vir.
Passo nas imediações do hotel e continuo a andar até à praça por onde passei ontem, a caminho da Tetryakova clássica. Mais uma vez o lugar está cheio de gente, gente muito nova. No meio da praça uma rapariga loira e bonita cantava o ‘Let it be’, dos Beatles, com um perfeito sotaque inglês. Deixei-me ficar a ouvi-la e depois fui jantar a um sítio simpático, a sentir-me viva e a pensar que apesar do Camarada Lenine já não poder saber, a sua Moscovo continua viva, vibrante e interessante. Talvez de uma forma totalmente diversa da que ele idealizava quando viveu, mas como cantava a rapariga da pequena praça da estação de metro de Tretyakovskaya, imitando os Beatles, a vida tê-lo-ia também ensinado que, o que quer que a realidade faça aos nossos sonhos, ‘there will be an answer, let it be’.
*Algumas explicações sobre o processo, aqui
**A publicação dos ‘postais’ no Aventar está desfasada 5 dias.

Comments

  1. Jose Oliveira says:

    Mas, oh Elizabete. Esta conversa toda sobre o camarada Lenine e Cª serve para quê? Qual o objectivo?
    Já não há pachorra!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    • Elisabete Figueiredo says:

      Para nada, ora essa. Se não tem pachorra, o que acho totalmente aceitável, não leia. 🙂

    • miguel says:

      José, concordo plenamente!! Felizmente nem todos os autores do Aventar descrevem as suas férias de maneira tão exaustiva. O blogue transformar-se-ía numa revista de viagens….

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