Hoje, morreu a minha vizinha Ana Luíza.

Jorge Cruz

(Texto publicado na edição de Fevereiro de 2021 do Jornal “Palavra”, Mensal da paróquia de Reguengos De Monsaraz).                                                            

Vincent van Gogh, Woman with a Mourning Shawl [https://bit.ly/3t4tDlZ]

Hoje, 7 de Fevereiro de 2021, morreu a minha vizinha Ana Luiza. Era a última das vizinhas da rua das Áreas de Baixo de quando para lá fui morar. A vizinha Ana Luiza era viúva do vizinho Miguel Tareja. O vizinho Miguel Tareja era escriturário no Zé Rosa, que era um senhor que tinha muitos negócios em Reguengos, entre os quais a loja dos rapazes que ficava no prédio onde depois foi o banco Espírito Santo, hoje Banco Novo. O vizinho Miguel Tareja era do Sporting e gostava muito de futebol. Foi ele quem me ensinou o que era um “offside”. E gostava muito de canários. Tinha uma casa cheia com canários, a que chamava a casa dos canários. No quintal tinha um porco e uma cisterna com uma bomba manual de tirar água. A vizinha Ana Luísa tinha muito medo das correntes de ar e do frio. Quando, às vezes, iam à noite à nossa casa ver televisão, de inverno, a vizinha Ana Luísa quando saia embrulhava-se toda com um xaile pela cabeça por causa do frio. A gente dizia que parecia um avejão. A vizinha Ana Luiza e o Vizinho Miguel Tareja só foram viver para a rua um pouco depois de eu já lá viver. Antes, naquela casa que fazia esquina com a rua de Mourão, viviam duas irmãs, já velhas, a que chamavam as “cabecinhas de rola”. Tinham muitos gatos.

Mais acima vivia o vizinho Miguel, que era casado com a vizinha Maria Antónia, que morreu muito nova. O vizinho Miguel era choffeur de camionetas. 

A vizinha Catarina, que era costureira, e o vizinho Lino que era canteiro de granito, viviam na casa seguinte. Era o nº 10. Mais tarde, o vizinho Lino emigrou para França, e quando voltou, já reformado, ia à pesca, numa mobillete azul que trouxera de França. Ainda fui com o vizinho Lino à pesca algumas vezes. Era um bom pescador. 

Sempre a subir a rua, viviam a vizinha Ilda e o Vizinho Joaquim Barbeiro, que era barbeiro. Nessa altura, em que eu era pequenino, tinham uma vaca no quintal para dar leite. Ainda não havia leite de pacotes, e o leite era vendido à porta. Os leiteiros traziam um cântaro de zinco e um receptáculo com as medidas, dos quartilhos e meios quartilhos até ao litro.

Por cima vivia o vizinho Estevão, que era tractorista e a vizinha Mariana que era doméstica. 

Numa casa pequenina, com apenas uma porta para a rua, vivia a vizinha Rosalina e o marido que já me lembro como se chamava. Eram peixeiros e vendiam peixe no mercado. À porta tinham sempre muitas canastras de madeira, do peixe, dentro de um carrinho que atrelavam a uma motorizada. Também vendiam peixe pelas ruas com esse carrinho.  

Na casa seguinte vivia um casal que também vendia na praça. Frutas e hortaliças. Eram o vizinho Manuel Dias e a vizinha Maria Inês. Tinham uma casa, a dar para o quintal, sempre cheia de couves, repolhos, alfaces, batatas, laranjas e temperos, tudo encima de uns estrados de madeira. Vendiam na praça do mercado, mas toda a gente se ia aviar lá a casa. A casa cheirava sempre muito bem, a coentros e a verduras.

Os últimos vizinhos da rua, mesmo junto ao muro que dava para o Moinho de Vento, eram o senhor Artur e mulher. Viveram aí por pouco tempo. Parece que foram viver para fora e venderam a casa. Nos anos sessenta muita gente abalava para Lisboa, ou emigrava para o estrangeiro, sobretudo França e Alemanha. 

Na casa em frente, no lado nos números ímpares, viviam dois irmãos muito originais. Era a vizinha Loba. O apelido era Lobo, mas como era mulher toda a gente lhe chamava Loba. Ela não gostava. O nome dela era Maria Lobo, dizia ela. Às vezes vivia lá o irmão, um homem que ainda usava cinta preta à cintura, chapéu de aba direita e um lenço de riscado cinzento ao pescoço. Ele dizia que era anarquista e costumava recitar poesias em voz alta, sobretudo nos dias em que chegava bêbado a casa o que era quase sempre. Era o Joaquim da Fonte. Muita gente tinha medo dele, mas eu não tinha. Ele falava-me sempre muito bem. Eram irmãos de um sapateiro que era uma figura da vila. Como tinha um nariz muito pronunciado camavam-lhe Chico Biconca. Ele não gostava nada que lhe chamassem isso e atirava com o martelo acima dos rapazes que se atreviam a desafia-lo. A oficina do Chico Biconca era no largo das camionetas, no lugar onde a Srª Delmira, que morreu a semana passada com 104 anos, veio a ter mais tarde a sua mercearia. Era a este sapateiro que eu levava as primeiras bolas de coiro que tive, a que se chamava bolas de catchu, quando se rompiam e precisavam de ser cozidas. 

A seguir à casa da vizinha Loba existia um terreno vazio, a que chamávamos o acento. A rapaziada toda da rua ia brincar para o acento. A seguir ao acento vivia a vizinha Isabel e o marido. Já eram muito velhinhos e foram dos primeiros da rua a morrer.

A casa a seguir era da vizinha Antónia, que era contínua na escola primária. Devia ser viúva porque vivia sozinha e andava sempre vestida de preto.

Seguia-se uma das vizinhas mais velha da rua, outra Catarina, que era casada com o vizinho António Joaquim. Para distinguir da vizinha Catarina mais nova, dizíamos que ara a Catarina da Jesus, que era sua filha. Costumava ir lá a casa fazer novelos de lã numa noveladora e numa dobadoura.

A vizinha Sofia vivia na casa junto ao celeiro. Era solteira e dava escola a meninos. Era uma espécie de escola pré-primária. Foi com ela que eu aprendi a ler ainda antes de ir para a escola primária. A vizinha Sofia tinha um amigo. Dizer-se que uma mulher tinha um amigo nessa altura era assim o mesmo que dizer que tinha um amante. Mas como a vizinha Sofia era já uma solteirona, ninguém levava isso muito a mal. O amigo da vizinha Sofia quando vinha lá à rua dava-me peras e por isso eu chamava ao amigo da vizinha Sofia o homem das peras.

Estes eram os vizinhos e vizinhas da minha rua, e hoje morreu a vizinha Ana Luísa, a última de todos. Espero que lá na terra para onde partiram vivam todos na mesma rua, e que sejam muito felizes, como nós eramos na minha rua.

Comments

  1. Que texto tão bom! Do melhor! Obrigado!

    • Alexandre Barreira says:

      …simplesmente divinal……faz lembrar as velhas redações…!!!

  2. António Sequeira says:

    Esplêndido!

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