O Putin da RFM


Lembro-me de uma polémica com a Rádio Renascença lá para os finais dos anos 80 do século passado (não, antes que me perguntem, ainda não tenho 100 anos).
Descobriu-se, nessa altura, que a emissora católica tinha uma lista de músicas proibidas, porque contrárias à Fé católica. Como o «Menino do Bairro Negro» do Zeca (Frase fatal: «Bairro negro / Onde não há pão / Não há sossego»); «Cálice» do Chico Buarque (Frase fatal: «Pai / Afasta de mim esse cálice (Pai) / De vinho tinto de sangue»); ou o «Vídeo Maria» dos GNR (Frase fatal: «Por parecer latina/ Suponho que o nome dela é Maria / É casta, eu sei, se é virgem ou não / Depende da tua fantasia»).
Recordo, a propósito, a forma ousada como o PSR, nos Tempos de Antena para as Legislativas, através da voz de António Macedo, emitia essas músicas precisamente na Renascença, acompanhada das denúncias ao comportamento da Emissora.
Décadas depois, a RFM, chancela da Renascença para um público mais jovem, refinou o lápis azul da censura. Agora, censuram também as músicas estrangeiras mas de forma subtil. Quando chega a altura do palavrão, ouve-se um silêncio tão rápido que só dá pela putinice quem estiver atento e conhecer bem a música.
Como eu não dou para o peditório dos católicos, foi a minha filha que me chamou à atenção. Em «Pepas», de Farruko, no verso «Bebiendo, fumando y jodiendo», a palavra jodiendo é omitida. Em «Good 4 you», de Olivia Rodrigo, na frase «Baby, what the fuck is up with that?», há uma palavra que não ouvimos (adivinhem qual). Em «Abcdefu», Gayle canta «Fuck you and your mom and your sister and your job / And your broke-ass car and that shit you call art / Fuck you and your friends that I’ll never see again / Everybody but your dog, you can all fuck off». Sem comentários.
Por sorte, ainda com a ajuda da minha filha, consegui gravar uma das músicas malditas da RFM. Como podem ver acima, Justin Bieber canta «Lonely», uma espécie de autobiografia acerca dos custos da fama. Logo no início do vídeo (6 segundos), ouve-se claramente:’Cause I’ve had everything / But no one’s listening / And that’s just … lonely». Fucking, o silêncio dos três pontinhos. FUCKING. E logo a seguir (40 segundos): «And everybody saw me sick / And it felt like no one gave a … . Aqui, os três pontinhos correspondem a shit. SHIT.
Estava a imaginar a cena. No remanso do gabinete, o Putin da RFM – baixinho, anafado e careca – sacava do seu grosso mas laborioso lápis, ciosamente guardado debaixo da batina, e ia riscando, a azul, as palavras proibidas. O resto ficaria para os técnicos da RFM.
No entanto, enquanto pesquisava para escrever isto, acabei por perceber que as próprias plataformas mundiais, como a Musixmatch, também censuram as letras. As «clean versions», como lhe chamam, estendem-se aos próprios vídeos das músicas.
Afinal, não é só a RFM que desrespeita e despreza os seus ouvintes e os próprios artistas. É todo um mundo global dominado pelos valores do politicamente correcto. O mundo da guerra e da violência mas onde não pode dizer-se a palavra fuck. A RFM limita-se a dar um pequeno contributo, pondo em prática os valores da sua proprietária, a Igreja Católica: a hipocrisia, a falsidade, a mentira, a canalhice. A putinice.
Mas já que gostam tanto de publicar as mensagens dos ouvintes, publiquem também esta, ó RFM, e cantem-na usando a melodia da Gayle: «Fuck you and your God and your church and your pedo priests / And your speech of true / it’s false, fuck you».

Comments

  1. João L Maio says:

    É assim há muitos anos. Na Rádio Comercial também o faziam. E agora não sei se ocorre, mas houve tempos em que os próprios artistas colocavam duas versões no YouTube: a versão “clean” e a versão “explicit”. Um exemplo:

    https://youtu.be/hsm4poTWjMs

    Essa música tem mais “palavrões” (palavras grandes, diga-se) do que palavras, ouve lá essa versão “clean”.

  2. João L Maio says:

    https://youtu.be/Wc5IbN4xw70

    Aqui, a versão “explícita”.

  3. JgMenos says:

    O palavrão como essencial à liberdade de expressão?
    A obescenidade necessária à formulação do pensamento?
    A raça ao serviço do preconceito?

    Os únicos direitos ofendidos são os dos autores; em contraponto o direito de não emitir tais músicas.

    • João L Maio says:

      Não, não é essencial. Mas, se faz parte, para quê censurá-los?

      Se eu quiser rimar com Menos, só me resta “merda”… ah, desculpa, isto é aliteração. O Menos é uma merda mole! Estás a ver? Não é essencial, mas às vezes são palavras específicas que definem melhor a condição.

    • POIS! says:

      Pois…é para responder ás três questões, não é? Cá vai:

      Primeira: Não, porra!
      Segunda: Ora essa! Mas que merda de pergunta!
      Terceira: Do preconceito? ‘da-se!

      Não senhor! Os ofendidos somos todos! Eu metia era essa malta toda que larga palavrões na puta da prisão!

      E todos castrados com aquela técnica do Quarto Pastorinho, que é reversível. Só de segunda a sábado, que era para ao domingo irem à missa!

    • Paulo Marques says:

      Atão não era todo democrata defensor dos valores ocidentais? Não aguenta o peso da máscara?

  4. Abel Barreto says:

    O palavrão não é essencial à liberdade de expressão, mas se é censurado, estar-se-á a ir contra a liberdade de expressão.
    Obscenidades? O sr. é que é uma obscenidade: insiste em formular “pensamentos” que mais não são que “pedras” atiradas por atrasadinho mental a quem passa.

    Suponho que quem gosta de ouvir/ler um autor, o prefira fazer tendo à sua disposição a música/texto na integra, e não versões “menos”.

  5. POIS! says:

    Bem, antes do 25 de abril eu ouvia a Renascença. À noite, que aquilo de dia era intragável. E nessa altura havia muita música do Zeca Afonso que não passava, mas porque estava mesmo interdita pela Censura/Exame Prévio. Foi na Renascença que ouvi os primeiros discos do Sérgio Godinho e do José Mário Branco, entre outros.

    Aliás, o “Grândola Vila Morena” foi a senha da revolução porque era uma das poucas canções do álbum “Cantigas do Maio” que não estava proibida nas rádios.

    Quanto ás outras, o “Cálice” já vinha censurado do Brasil. Uma vez o Chico Buarque desafiou mesmo os censores cantando umas coisas ininteligíveis sobre a música, ouvindo-se pelo meio o coro alto e bom som: “Cálice!”. E assim foi, até lhe desligarem a amplificação. Está documentado em filme.

    A proibição do “Video Maria” foi a mais caricata. Tal como o boicote a um filme dez anos antes, “As Horas de Maria”, do realizador António Macedo, o boicote só contribuiu para o sucesso estrondoso do maxi-single. Vendeu que nem pães quentes!

    E lembro-me de à época, ouvir por acaso a Renascença num auto-rádio daqueles que muda de estação quando se ouve mal alguma e estava a passar o “Highway to Hell” dos AC/DC.

    Como a letra era em “estrangeiro” já podia passar. A Maria a fumar? Nem pensar! Todos para o inferno? Tá bem, desde que seja de autoestrada!


  6. Analogamente, os noticiários manstream, quando falam de bombardeamentos do lado russo, identificam sempre a autoria, mas quando são do lado ucraniano nunca referem a autoria dos ataques. Porque será?

  7. JgMenos says:

    Ó coirões, mudem de estação!
    Liguem para a rádio do PCP e façam a lista do que lá nunca vão ouvir.

    Palhaços censóres armados em liberais!

    • POIS! says:

      Pois aqui fica.

      O brilhante apelo que JgMenos deixou aos seus pares no congresso da malta coirona que hoje se realizou e onde foi eleito presidente-mor.

  8. João Mendes says:

    Que PUTA de malha, Ricardo! FODA-SE!