Portanto, é de facto um tema de uma enorme prioridade, num momento em que se estima que cerca de 20% da população mundial vive com problemas de saúde mental, sendo a ansiedade e a depressão as perturbações com maior incidência. E, ainda para mais, sendo este um tema tabu em Portugal.
É assim que Carlos Oliveira, presidente executivo da Fundação José Neves (FJN), criada pelo CEO da Farfetch, introduz o “Guia para o desenvolvimento pessoal: como investires no teu bem-estar?”, em entrevista ao Diário de Notícias em Fevereiro de 2022.

Carlos Oliveira, presidente executivo da Fundação José Neves. Fotografia: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
No texto introdutório do “Guia”, facultado pela FJN na ligação acima, podemos ler que “(…) vivemos num mundo em que ter “mais” parece ser o melhor para o nosso futuro. Trabalhar mais, esforçarmo-nos mais, competirmos mais, comprar mais, ter mais dinheiro. Até certo ponto pode ser verdade. E quando chegamos àquele nível em que para alcançarmos “mais” temos que perder? Começamos a perder horas de sono, tempo com a família, abdicamos do desporto e deixamos de cuidar de nós. Será que querer sempre “mais” continua a ser o melhor caminho?”. O que parece ser uma inciativa relevante, primordial e de valor, pode ser, afinal, um sinal de que há pessoas com responsabilidade dentro da Farfetch que não leram, ou não quiseram ler, o “Guia” fornecido pela fundação do CEO da empresa. Ou os deuses estão loucos.

Fundação José Neves
Instado a responder à pergunta “Têm dados de quanto a pandemia veio agravar o problema e qual o impacto real dos problemas relacionados com a saúde mental?”, Carlos Oliveira responde que não, mas que “(…) obviamente, todos temos a noção de que a pandemia veio por a nu estas dificuldades, por diversas razões, desde alterações dos padrões de vida a que estávamos habituados a alterações nas dinâmicas de socialização, aumento de situações de stress emocional a que as pessoas estiveram expostas, etc”. De facto, é notável o peso que a pandemia teve ao nível da saúde mental da generalidade da população. Senão, vejamos o testemunho anónimo de um antigo trabalhador da Farfetch:
«Fui despedido (da Farfetch) depois de quase três anos como trabalhador temporário. Basicamente, por conta da pandemia, enviaram-nos para trabalhar a partir de casa. A partir daí, senti que as coisas estavam a mudar. Comecei a ser humilhado e totalmente ignorado pelos meus superiores. Durante alguns meses, tentei falar com o meu chefe, mas ele apenas me ignorava. Fui ameaçado com o despedimento se continuasse a tentar falar com ele, o que aconteceu meses depois. Senti sempre que tentavam diminuir o meu trabalho, nunca o valorizavam. Culparam-me pelo despedimento; segundo eles, eu não socializava o suficiente com os meus colegas de trabalho, quando eu estava focado em tentar crescer como profissional naquela empresa. Mentiram-me sobre o meu contributo, dizendo que não era uma mais-valia. Mas durante os três anos em que lá estive, ultrapassei sempre as metas diárias. Sinto-me diminuído e humilhado.»

Carlos Oliveira, presidente executivo da FJN, José Neves, o fundador, e António Murta, administrador não-executivo
“Quando nos sentimos mentalmente bem, estudamos e/ou trabalhamos melhor, comunicamos mais e melhor com os outros, usufruímos melhor do nosso tempo livre e contribuímos de forma mais ativa para o nosso desenvolvimento e o da comunidade.”
É mais uma passagem do “Guia para o desenvolvimento pessoal: como investires no teu bem-estar?”. Mas por que razão a FJN prega aquilo que, alegadamente, a Farfetch não pratica? Será hábito já secular o de se espalhar uma mensagem, tentar lucrar com isso enquanto outros o praticam e nós não? Para nos sentirmos mentalmente bem, é necessário que se criem as condições para tal. E, por isso, é totalmente descabido que se tente dizer a alguém “mereces o teu bem-estar psicológico” e depois exercer tamanhas pressões no seio laboral. É também importante impor um regime de zero discriminação no local de trabalho. E devem ser as altas patentes as primeiras a ter formação no assunto. Vejamos:
«(Na Farfetch) disseram-me: desculpa, nós até gostamos de trabalhar contigo e nada nos aponta noutro sentido. No entanto, não poderemos ajustar o teu salário para o nível do de outros colegas. Sabemos que eles ganham mais quatrocentos euros do que tu, mas achamos justo, uma vez que tu és português e eles vêm de fora. Todas as semanas há algum colega que me diz que está em burnout.»
Fazendo de “chefão” na Farfetch, direi: sabemos que os portugueses estão habituados a terem de pagar para trabalhar, mas não acham que tais práticas, para além de serem profundamente erradas e poderem constituir crime, entram em contradição com o “Guia” lançado pela FJN? Será que o CEO José Neves conhece os meandros da sua empresa? Se sim, será que leu o “Guia”? Se sim… fiquei sem perguntas…

A saúde mental é um tema de cada vez maior importância; e mais do que capitalizar um tema que diz respeito a todos, são necessárias políticas públicas que combatam os flagelos que afectam a saúde mental da população.
Continuemos.
“Este guia pretende ser transversal, precisamente por acharmos que nesta fase é preciso que o maior número de pessoas possa tomar contacto com esta temática, com estas realidades (…)”, diz Carlos Oliveira ao DN, respondendo à pergunta “É direcionado [o “Guia”] para ambiente profissional ou para todas as faixas da população?”. Para o ambiente profissional, não me parece que o seja. Ou, pelo menos, não para o ambiente profissional onde a Farfetch actua. Mas vamos continuar a fingir que a FJN não pertence ao mesmo homem que detém e criou a Farfetch. Mais um testemunho:
«Não me renovaram o contrato na Farfetch, porque se o fizessem eu tornar-me-ia efectiva na empresa. Então, como desculpa para cessarem o meu contrato, decidiram começar a espalhar a ideia de que eu era uma bully e que incomodava os meus colegas estrangeiros. Disseram que eu não representava “os valores da empresa”, tais como, e cito, “ser humano”. Posto isso, humilharam-me com esse discurso em frente a toda a gente na área de repouso.»
Mais um, o último por hoje, para os mais fortes:
«Por favor, não exponham a minha cara ou o meu nome, pois ainda não recuperei psicologicamente. Olá! Estou aqui a tremer ao ler todos estes testemunhos, pois lembram-me de um beco muito escuro. Trabalhei quatro anos na Farfetch. Fui despedida depois de ter denunciado o assédio moral e sexual por parte de um dos directores, no Brasil. Espero que a empresa sofra, finalmente, as consequências dos seus actos; há imensas mulheres que trabalham/trabalharam na Farfetch que continuam assoberbadas pelo medo e pela depressão.»
Termino aqui este capítulo, prometendo voltar com mais testemunhos. Repito o que disse na Parte 1: não é uma, não são duas ou três pessoas; são centenas de testemunhos com queixas graves sobre o clima de intimidação que se vive na Farfetch. E não vou correr a cortina sem antes citar a FJN:
De repente, tudo parece normal… mas afinal, porque é que não está tudo bem, o que é que ainda me prejudica? O dia-a-dia pode ser bastante desafiador, cumprir horários definidos ao segundo, inúmeros compromissos, competir pelo sucesso, cuidar dos outros, trabalhar pela estabilidade familiar, realizar tarefas pessoais, investir no teu bem-estar… …e para dares resposta a todos estes desafios vais arranjando estratégias de coping.

José Neves, CEO da Farfetch. Fotografia: Lucília Monteiro
Espero, sinceramente, que a Farfetch arranje outras estratégias de coping. Estas não estão, claramente, a resultar, e espera-se mais de uma “unicórnio”.
Continua…
NOTA: todos os testemunhos foram recolhidos da página de Instagram da artista polaca Patrycja Juraszczyk, em colaboração com outros trabalhadores da Farfetch que, por temerem represálias, preferem manter o anonimato – tal vontade será sempre respeitada até que os mesmos decidam o contrário.
Parabéns pela exposição que de facto é pertinente. No dia em que se começar a desfiar o novelo da Banca sobre o tema do mobbing / assedio moral e outros creio que o país vem abaixo. No BCP è mato tais praticas. Perseguem as pessoas, minimizam, isolam e só vingam os betos da nova business school/ os betos da catolica e alguns meninos do ICTE – mal se formam, nem um ano depois já têm cargos de direção e têm zero de empatia. Os casos de depressão, esgotamentos / burnout e tentativas de suicídios são mais que muitos, mas andam para aí com conversas abjetas de sustentabilidade que se não fossem tragicas até davam para rir,