Bidonville-sur-Odemira

Em Odemira, Portugal olhou-se ao espelho e contemplou um dos resultados de anos de abandono e negligência a que o país profundo foi condenado pelo eucalipto centralista, comandado por um centrão incompetente que se está nas tintas para aquilo que se passa para lá da sua bolha, com uma ou outra excepção pontual.

Poderíamos falar sobre os danos profundos que alguma daquela agricultura intensiva causa nos solos, esgotados e envenenados por fertilizantes cancerígenos, ou na quantidade absurda de água que algumas daquelas culturas consomem, que aprofundou a sua escassez, num distrito onde sempre falta água e pouco ou nada chove.

Poderíamos falar sobre o abandono e o esquecimento a que está entregue o Alentejo, seja Beja ou o monte mais recôndito, com uma população envelhecida, empobrecida e que se sente invadida – e é manipulada a senti-lo – por imigrantes mais novos, diferentes, com uma língua e uma religião diferente, e tudo isto no quadro de uma estrutura social incapaz de absorver o impacto da nova realidade populacional, sem forças de segurança, cobertura de serviços de saúde ou infraestruturas básicas adequadas. [Read more…]

Odemiração

Um dos meus melhores amigos vive na minha memória. Tinha idade para ser meu pai e foi, durante vários anos, companheiro de tantas conversas. O Manuel Dias, velho jornalista prestigiado, andou pelo mundo inteiro. Contou-me que esteve na Cidade do México, em trabalho. Perdido na metrópole, a caminho de uma sessão com gente fina, deu por si, bem vestido, a entrar num tasco muito pobrezinho, para beber uma cerveja. Não me lembro das palavras exactas, mas o Manuel fez-me ver que tudo ali era miséria, pobreza, fome, os mais pobres dos pobres. Acrescentou: “Nestes momentos, um tipo é obrigado a pensar na sua camisa, na sua gravatinha, nas desigualdades.”

Nem sempre pensamos nas desigualdades. A maior parte das vezes, não pensamos nisso, por um egoísmo que, em parte, é saudável – com tanta miséria e tanta exploração que há pelo mundo, não teríamos tempo para sermos felizes ou, no mínimo, inconscientes ou ignorantes (condições necessárias para se ser feliz). Não teríamos tempo nem descaramento para apreciar a gravata, as jantaradas, os inúmeros privilégios com que somos cumulados, porque a vida que temos não resulta só do mérito, mas sobretudo de uma série de acasos, por muito que os portadores de certezas absolutas, sectários religiosos e políticos, acreditem no merecimento.

O triste espectáculo da escravatura em Odemira não é novidade. Há quem fique admirado por se saber. Fico espantado (até comigo) por não se pensar nisso, por acreditarmos que não é possível no nosso mundo, na civilização europeia. A exploração é tão antiga como a humanidade ou é a maneira de exercermos a nossa selvajaria essencial, lobos uns dos outros. É uma pulsão, é o poder a corromper-nos. [Read more…]

Ode, mira este Portugal

O que me diz toda esta polémica com o caso de Odemira? Que é o Portugal de sempre. O Portugal que assusta qualquer um que o “mire” de fora.

Num breve resumo: temos um empreendimento turístico que concorre de forma desleal com muitos outros na região. Cujo investimento foi feito com batota, ou seja, com empréstimos a fundo mais que perdido ou a fundo de amigo, via BES. Temos explorações agrícolas que concorrem de forma desleal utilizando mão de obra escrava. Temos um Estado que faz de conta que não vê nada. Reguladores que não regulam nada. Autarquias que não se preocupam com nada. E depois, quando a coisa dá para o torto temos o tradicional “não sabia”.

Reparem, o Senhor Zé tem uma exploração agrícola onde paga aos seus trabalhadores cumprindo integralmente as leis do trabalho a concorrer com o Zé S.A. que escraviza os seus trabalhadores. E vão os dois vender ao mercado em pé de igualdade e, claro, o Zé da S.A. consegue ter preços mais baixos que o Senhor Zé. Agora é substituir a exploração agrícola pelo restaurante, pela loja de roupa, pela mercearia e passar de Odemira para Lisboa, Porto, Braga, Vila Real e por ai fora. O mesmo se diga no tocante a “resorts” e o pequeno investidor que criou um turismo de habitação ou um Hostel. Quando vemos e lemos a “engenharia” financeira na base da criação do ZMar é todo um Portugal dos pequeninos, do amiguismo, das velhas famílias, dos chegados ao Terreiro do Paço. O BES empresta sem as garantias que exige ao comum dos mortais. As autoridades fazem de conta e deixam construir onde não é permitido ao comum dos mortais e quanto a impostos, vou ali e já venho. Ora, isto não é liberalismo económico. Nem se pode chamar a isto capitalismo selvagem. É pior, é crime sem castigo. É Portugal.

Ora, eu gostava de ver a Iniciativa Liberal a falar a sério sobre isto. A explicar que esta merda não é liberalismo, que esta merda nem capitalismo é. E sim, sou mais exigente com a IL do que com os outros nesta matéria. Porque dos outros já não espero nada. Trabalho escravo, violação das regras da concorrência, abuso de poder é o resumo do que se passa por estes dias nas notícias.

É Odemira a ser o espelho de Portugal.

Odemira para totós

Da exploração laboral à cobertura mediática, passando pelo levantamento popular no ZMar. Tudo – bem – explicado pelo Diogo Martins, no Ladrões de Bicicletas.