Uma tragédia, o Emplastro e um filho da Ribeira

Ninguém me tinha lembrado – nem um artigo na imprensa, uma curta peça de fim de telejornal – que se cumpria mais um aniversário da Tragédia da Ponte das Barcas e só porque estava sol e me apetecia um fino é que eu fui parar à Ribeira nessa tarde. Mas assim que cheguei deparou-se-me um cartaz a anunciar uma romagem às Alminhas da Ponte e pareceu-me uma coincidência feliz.

O cartaz anunciava uma “celebração da palavra”, coisa bonita, pelo Padre Jardim. Como costuma acontecer a quem é deixado crescer sem doutrinamento tenho a minha particular colecção de crenças, todas muito avessas à ordem das religiões. E não foi a intervenção de um clérigo, de resto muito respeitável, que me fez ficar, mas a evocação de uma história que me arrepia desde que pela primeira vez me contaram por que havia sempre velas acesas frente a um obscuro painel voltado para o Douro. Que se continue a lembrar, com a chama de uma vela que gerações sucessivas vão mantendo acesa, as vítimas que já ninguém conheceu, mas dos quais podemos ser todos descendentes – anónimos e esquecidos avós, porque os pobres não cultivam a genealogia e dos nossos antigos guardámos só uma foto amarelecida, uma colecção de chávenas esbotenadas, ou a cor das nossas íris – que se continue a lembrar as quatro mil vidas que a cidade perdeu nesse dia parece-me sinal de uma grandeza de alma que nem todos os lugares têm.

Nesse sábado de sol cumpriam-se 205 anos da tragédia e a Ribeira parecia muito longe desse dia tenebroso. Muita gente a passear, uma tuna espanhola, outra portuguesa, muito ruído, barcos e barcos e barcos a despejarem hordas de turistas. As esplanadas cheias, lá se arranjou uma mesa entre japoneses. O fino veio sem tremoços e o empregado explicou que já não são grátis. Se a austeridade chegou aos tremoços, é o fim do mundo tal como o conhecemos. Pedi-os e paguei-os, que remédio, até fazer horas para a romagem. Quem te diria, rapariga – soprei para dentro da casca do tremoço – que haverias de fazer horas à espera de uma procissão? Mais um sinal do fim do mundo tal como o conheço.

Quase à hora, subi ao muro, por cima dos arcos da Ribeira, cesto da gávea ideal para apreciar o acontecimento. Já lá estavam cadeiras e um púlpito improvisado frente ao rio. Um coro impecavelmente trajado, um organista, uma moça trajada de frade (teria o maior gosto em dizer-vos a função que ela cumpria mas já avisei que ninguém me ensinou essas coisas), alguém a testar o sistema de som, fiéis circunspectos sentados frente ao púlpito, à espera. E a cirandar por ali, mãos atrás das costas, o Fernando Alves, que vocês não sabem quem é, mas se eu disser “o Emplastro” lembram-se logo do homem com sinal na bochecha que aparece em quase todos os directos televisivos no Porto, e sobretudo nos que têm a ver com o FCP.

Tendo o Emplastro inspeccionado tudo, procurado a imprensa ausente, resistido com uma inércia não desprovida de alguma diplomacia às tentativas de mandá-lo dar uma volta, dirigiu-se enfim ao microfone e começou a rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria pouco ensaiados e já muito esquecidos. Como o sistema de som já estava ligado, ouvia-se e bem. E o que era um momento solene ameaçava transformar-se em rábula de revista. Os membros do coro, os mais embaraçados porque eram os que representavam a Confraria, conferenciavam entre si, a cara escondida atrás das pautas, como se estivessem demasiado ocupados com os preparativos para reparar no que acontecia. Só uma senhora, muito idosa, lhe gritava que saísse dali, sem que ninguém, muito menos o Emplastro, lhe fizesse caso. Cá em cima, no muro, dávamos gargalhadas.

Quando a procissão se aproximou, com o Padre Jardim caminhando solenemente sob a sombrinha – chama-se pálio, corrigem-me – que um acólito segurava, o Emplastro ocupou discretamente uma cadeira e manteve-se silencioso e sóbrio, prova de que é capaz de fazê-lo, mas só quando quer.

O Padre Jardim deu início à cerimónia, juntou-se mais gente, deixou de ouvir-se, ao muro só chegavam fragmentos de frases sobre os acontecimentos desse dia, sobre a devoção das gentes da Ribeira às Alminhas da Ponte, e eu lembrei-me daquela cena do A Vida de Brian, quando, em pleno Sermão da Montanha, os fiéis mais distantes têm dificuldades em ouvir as palavras de Jesus e o “Blessed are the meek” (Abençoados os mansos) transforma-se em “Blessed are the Greek” (Abençoados os gregos). Pareceu-me o momento de descer.

Em baixo, frente às Alminhas, membros da Confraria distribuíam folhetos, o Padre Jardim falava sobre o amor e sobre Deus, quem chegava juntava-se ao grupo, quase todos com cara de não estar a entender patavina, turistas faziam fotos, algum benzia-se e seguia caminho, as gaivotas guinchavam por cima de nós, e um sujeito apareceu por ali, com passo decidido e só muito levemente cambaleante, passou ao lado do grupo e atirou:

– É tudo mentira!

Poucos o ouviram. Ele continuou a andar, mas virou a cabeça para nós e ainda gritou, mesmo antes de desaparecer sob os arcos, engolido pelas sombras:

– Querem saber a verdade, têm de falar com a gente, com os filhos da Ribeira!

Alguém gritou um “cala-te, bêbado” mas ele já tinha desaparecido. Fiquei a pensar que o sujeito tinha razão. Que ele tivesse nascido 150 anos depois do acontecimento não queria dizer nada. Tinha razão, pois tinha, o sacana, quem quiser saber as histórias do rio tem de perguntá-las aos filhos da Ribeira, enquanto ainda os há, enquanto não os afastam para algum bairro social da periferia, onde contarão a quem nasce histórias do rio que já não se vê dali.

Entretanto, e na ausência de câmaras, o Emplastro retirou-se, imagino que para alívio dos organizadores do evento. Finda a sessão, fiquei a pensar que tudo fora notavelmente representativo do que é, se não o país, pelo menos a cidade. E muito mais bem disposta do que havia chegado, saudei as alminhas com um aceno de cabeça respeitoso e subi à baixa (sim, é possível dizer isto no Porto) para ir lanchar.

Comments

  1. Se foi para me lembrar a minha promessa, não está(s) esquecida: hei-de levar-te às catacumbas da Irmandade, a que chamaste Confraria!
    E não, não, vou perguntar-te se sabes mais do Pai Nosso e da Avé Maria do que o Emplastro. Não te trairia dessa forma…
    Adorei. Como (quase) sempre.

  2. Nas confrarias, há confrades, que se tratam por confrade, isto e aquilo… Nas Irmandades, há irmãos, que se tratam por irmão, irmã, isto e aquilo… O Irmão Maior é o Juiz…

  3. Que diferença tão subtil.

  4. Não vejo qualquer problema num emplastro que reze ao microfone.

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