O regresso do medo

euronews

Ontem à noite, na RTP 2, o 25 de Abril foi notícia na Euronews numa reportagem onde uma parte, a entrevista a José Gil, teve por sub-título “The Lost Carnation Revolution” (A revolução dos cravos perdida). Escapou-me o sentido desta adjectivação e hoje fui rever a reportagem no site da Euronews. Além de nela não ter encontrado matéria que justificasse esta titulação, não encontrei o próprio título inclusivamente. Nem na edição portuguesa, nem na edição em inglês. Porquê a revolução perdida? E porque razão a reportagem é diferente, só aparecendo este título na emissão da RTP 2?

Salva-se a entrevista a José Gil, que afirma que “a política de austeridade está a fazer com que, cada vez mais, se tenha medo.” E é isso. Não é o regresso do medo da acção do Estado directamente sobre o indivíduo, como acontecia com a PIDE, mas das consequências da acção do Estado nos meios de subsistência desse mesmo indivíduo. Tal como há várias formas de se esfolar um coelho, para seguir a semiótica introduzida por Passos Coelho, também há muita forma de perder a liberdade. Sem pão não há democracia, que se dilui no medo de se perder o emprego, entreabrindo a porta para a aceitação de limitações e condições que antes seriam impensáveis.

A seguir, a entrevista em causa.

José Gil, professor, filósofo, escritor, observador atento da sociedade portuguesa, falou à euronews.

Autor de um livro que, na primeira década dos anos 2000, fez correr muita tinta: “Portugal Hoje – O medo de existir”.

euronews – Senhor professor, o que é que mudou na mentalidade dos portugueses nas últimas quatro décadas, depois do fim da ditadura?

José Gil – Mudou muita coisa e muita coisa permaneceu. Primeiro, a liberdade fez com que a maneira de ser e a maneira de estar, sobretudo, mudasse. Por exemplo, uma das mudanças de mentalidade foi o consumismo, sobretudo nos anos do cavaquismo e com esse consumismo e com o dinheiro e a melhoria da qualidade de vida apareceu um individualismo mais acentuado. Os portugueses habituaram-se a ter direitos – pelo menos um bocadinho – e começaram a aprender, na democracia e na nova liberdade, a reivindicar, primeiro timidamente, mas fortemente, se bem que haja ainda hoje limites e tenha havido sempre limites.

en – Os portugueses são hoje um povo desencantado com as promessas da Revolução dos Cravos. Porque é que isto aconteceu?

JG – Bem, aconteceu porque precisamente a revolução de 25 de Abril foi uma revolução que prometia uma sociedade utópica que estava, alás, delineada na constituição, que era uma constituição socialista, das mais avançadas no socialismo teórico de todo o mundo e essa sociedade utópica foi, a pouco e pouco, desmentida e substituída por uma outra sociedade real, em que imperava – muito simplesmente – não o socialismo, mas o capitalismo. Nem sequer na ideia de democracia e na ideia de liberdade houve um desenvolvimento concreto na sociedade. E houve aí uma deceção que permanece e se acentua, cada vez mais, hoje.

en – Portugal ainda tem “medo de existir”? Ou a crise criou uma nova dinâmica na sociedade portuguesa?

JG – Não. Eu acho que Portugal tem agora medo de não existir, quer dizer, um outro medo que é o medo de perder o emprego, perder todos os adquiridos e os direitos que tinham na saúde, na justiça, na educação. A política de austeridade está a fazer com que, cada vez mais, se tenha medo. Não há uma nova dinâmica na sociedade. Há casos de sucesso, de empresas que têm sucesso. Simplesmente não há uma política do governo que promova e que seja a causa de uma dinâmica, quer dizer, de uma lógica própria que faça com que o desenvolvimento económico – que depende aliás também da Europa – aconteça. E disso depende toda a nossa situação.

Comments

  1. Nightwish says:

    O Pacheco já o disse muito melhor.
    E portugueses reinvindicativos? Que é que andou a beber e que mundo conhece ele?

  2. Maria de Almeida says:

    “A política de austeridade está a fazer com que, cada vez mais, se tenha medo.”
    Depois de se ter perdido o medo dos papões censores, dos Pides e afins, e das consequências de um pensar livre, é a “dialéctica” da mesa, do futuro dos filhos e do nosso, que mais nos atemoriza. E a austeridade, é, sem sombra de dúvidas, a nova forma de nos cercear e de nos tolher de medo.