A “ocupação” da TSF

Isabel Atalaia

Ensaio Geral

Mais do que uma “ocupação” para mim foi uma travessia de muita emoção, que partilhei com a cooperativa O Bando da qual sou membro e que acompanho há 35 anos. Este ano por feliz coincidência o Bando vai festejar a idade da Revolução.
A partir de um convite da TSF e inspirados nesta “Quarentena” O Bando reuniu 50 actores (profissionais e amadores) e músicos.

O ensaio geral foi dia 23, poucos sabiam onde iam ou quem íamos “ocupar”, na primeira hora da madrugada de 24 de Abril, na reunião final de preparação sentia-se a partilha de um pequeno arrepio. Resultaria? Não resultaria? E problemas? E confrontações?

Nessa mesma madrugada estava guardada para mim e só para mim a especial emoção da chegada de surpresa, do meu filho que veio celebrar Abril em Lisboa, vindo da Holanda onde está há quase 6 anos.

Havia um guião com palavras de Sophia, Al Berto, João de Melo. Manuel António Pina, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Gonçalo M. Tavares, Miguel Jesus, José Saramago, Hélia Correia, Raul Brandão, Miguel Torga, Ricardo Guilherme Dicke, Fernando Alves, Virgílio Ferreira… Tantos que não sei se esqueço algum. E, as personagens que disseram esses textos nos espectáculos do Bando ao longo destes quarenta anos. Todos nos lembrávamos das palavras de um dos espectáculos que atravessou gerações de actores e públicos – “Afonso Henriques” – “trazemos palavras antigas que se transformam e desfazem com as novas ideias. Justas são, boas são. Queremos que valham por nós e por vós e por aqueles que depois vierem”.

Foi uma “improvisação estruturada” e passo a citar:

1. Trouxemos livros dos nossos poetas e escritores;
2. Trouxemos também as flores que brotam na Primavera;
3. Trouxemos a Constituição para não perder o juízo;
4. Trouxemos o dicionário para recuperar o sentido da vida;
5. Trouxemos o abecedário para refrescar a informação;
6. Queremos a igualdade para sonhar um mundo novo;
7. Queremos caber nas palavras transparentes da libertação;
8. Queremos reconciliar a política com a poesia;
9. E passar pela solidão para desaguar numa corrente de ar:
10. Onde a música construa um manifesto do indizível.

Com esta “carta de intenções” cada um partiu para sua casa.

Depois de uma noite muito pequenina, às 8 da manhã de dia 24, estávamos todos juntos na Rua da Fábrica de Material de Guerra, com livros e flores. Seguimos a pé até à sede da TSF, em pequenos grupos, conhecidos, amigos que fingiam não se conhecer.

Aos poucos lá nos juntamos, com os nossos livros, as nossas flores e as nossas palavras:- “PALAVRAS OCAS, ORELHAS MOUCAS”; “SOMOS PESSOAS”; “HOJE É 24 AMANHÃ É 25”; “AS PALAVRAS SÃO A NOSSA ARMA”, Repetidas ao ritmo das manifestações, as nossas palavras de ordem inventadas.

A rua é atípica, cheia de armazéns, oficinas, mas pouco buliçosa. “Mirones” do outro lado da rua., uns quantos armados de “smartphones”, as memórias, as bizarrias e as pequenas curiosidades são agora armazenadas e partilhadas à velocidade de um clique.

No pequeno quiosque, na arcada de acesso à porta do edifício sede da TSF, as bicas correm imperturbáveis.

Chega a primeira repórter faz as perguntas da praxe:

– Quem somos? O que queremos? As respostas seguem ao fio da improvisação. Lentamente vamos-nos aproximando da porta, e chegando aos elevadores. O caos é sonoro, mais do que outra coisa.

Sem oposição e sem espanto, utilizando todos os elevadores disponíveis subimos ao terceiro andar. O olhar surpreso da recepcionista é um olhar bonito. Por esta altura já Ana Catarina Santos está connosco.

O João Paulo Baldaia cumpre o guião e entra-se na redacção, aí os repórteres estão entre o incomodado e o surpreendido. Dizemos:- Bom dia. Obrigado por nos receberem. Dizem-se os textos, as palavra, aquelas palavras, que para mim, ecoam de forma especial:- LIBERDADE, IGUALDADE, DEMOCRACIA…

Os actores operam a metamorfose e assumem os seus personagens. Vai surgir a Alba e o Capitão do espectáculo “A Noite” com textos do Al Berto, o Cavaleiro do espectáculo “Ainda não é o fim” com textos do Manuel António Pina, o Coveiro do “Salário dos Poetas” de Guilherme António Dicke, o Menino do espectáculo com mesmo nome com texto de Jorge de Sena, tantos, tantos.
O Cão da “Jangada de Pedra” de José Saramago lerá até ao fim a Constituição na sua voz cada vez mais rouca. Há ainda a Dulcinha do “Montedemo” da Hélia Correia, Madalena – “Os Bichos” de Miguel Torga, a Lurdes. a Mylia. a Galinha, a Cantarina, Inês. Dalila, de outros tantos espectáculos de outros tantos autores.

A Marta do “Gente Feliz com Lágrimas” de João de Melo lerá o seu Manifesto, um poema de Miguel Torga por esta altura já há lágrimas em muitos olhos. Por esta altura a redacção é um estendal de palavras, as estantes dos músicos já estão montadas. Deixei em cima de uma secretária as minhas palavras, escolhidas no ensaio da noite anterior, num impulso:- VAI LIVRE AMA.

Tenho a impressão que a repórter pontua a emissão tentando descrever a multiplicação de gestos e vozes dentro da redacção.

Afinam-se os instrumentos, os primeiros acordes da composição de Jorge Salgueiro para o espectáculo “Pino do Verão” a partir de poemas de Eugénio de Andrade fazem-se ouvir.

A “Palmeloa” canta “Uma pátria tem algum sentido/ quando é a boca que nos beija/ a falar dela”. Ana Catarina Santos continua a captar o som sem conter as lágrimas. Ao fundo da redacção vejo que o Fernando Alves também chora. A estrofe será repetida primeiro pelas mulheres e acaba com um “tutti” vibrante. Silêncio. Houve uns segundos do mais absoluto silêncio. Olhamos uns para os outros espantados. Palmas, risos e lágrimas. A todos os repórteres foi dado uma ramos de flores silvestres colhidas na véspera em Palmela. Abraços. Adeus. Obrigado.

Abraço o meu filho, abraço o meu companheiro Raul, da boca dele saíram as palavras que mais gostei e que sempre nos uniram “é preciso ter muita força para querer a igualdade”.

Chove na rua. Estou feliz.

Comments

  1. rosalina p.g. marques says:

    escreveste um comentário lindo! Beijinhos

  2. Ana Catarina Santos says:

    Foi magnífico, inesquecível! Um dia tão bonito…
    Muito obrigada.
    Ana Catarina Santos

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