Imaginemos que eu vos dizia que a polícia me tinha parado quando conduzia na marginal, e que era suposto que a polícia o fizesse porque eu levava o carro aos esses, não pela razão mais óbvia, mas porque ia a chorar tanto que já não via bem a linha, e de cada vez que limpava as lágrimas com as costas da mão aproximava mais o carro da outra faixa, e a marginal, aquela marginal, talvez a conheçam, é de dois sentidos.
Ah, não sejam assim, quem nunca meteu um fado a tocar no rádio para puxar a lágrima, quem diz um fado diz aquela canção, que atire a primeira pedra.
Bem, a polícia apareceu de repente, estava um carro-patrulha parado na bomba de gasolina, e quando eu passo, liga as luzes e vem atrás de mim, e eu chego-me mais para o passeio para que me ultrapasse, e ele não ultrapassa, penso que quem conduz deve ser um grande nabo, e é então que me ocorre, com mil demónios, estão atrás de ti!
Encosto um pouco à frente, onde há espaço na berma, e fico no carro, deito mão ao pacote de lenços e espero que venha o tipo a quem – lembra-te! – devo tratar por senhor agente.
– Ora muito boa tarde – diz ele, ainda a avançar para mim, em passo lento e pomposo.
Tocou-me um polícia tradicional, que sorte a minha. Olho-o com a dignidade possível dos meus olhos inchados de sapo e observo a sua expressão de pena, tão masculina, o embaraço deles, que nunca sabem lidar com mulheres em pranto.
– Já percebi por que circulava dessa forma. Sabe que estava a pôr em risco a sua integridade física e a dos outros?
Ooohhh, mas isso só me faz chorar mais ainda, eu não queria pôr em risco a integridade física de ninguém, quem me dera manter todos íntegros à minha volta, e vê-los, íntegros, a passar por mim, a acenar-me na sua perfeita, imaculada integridade.
O polícia, perdão, o agente, enfia a mão sem luva pela janela do carro e apaga o rádio. Que falta a minha, não tê-lo feito antes.
– Deixe lá o fado, que só lhe faz pior. E saia da viatura, por favor.
Eu lanço a mão ao porta-luvas, à procura dos documentos que devo ter, e tenho, ainda agora aqui estavam, mas ele faz-me sinal que os deixe ficar onde talvez estejam.
Saio pronta para o que der e vier. Serei talvez a primeira condutora a ficar sem carta por ser chorona. De mim se dirá: chorou tanto que pôs em risco a integridade física de vários seres humanos que passavam pela marginal, grande facínora.
E então, ele, o senhor agente, diz-me:
– Pessoalmente, prefiro “La Mer”.
La Mer, pensa depressa, que será? Está no código da estrada?
Deito mão ao lenço para ganhar tempo, uma fungadela, mas não estou para pensar e arrisco:
– Qual La Mer?
– Aquela que começa assim “La mer / Qu’on voit danser le long des golfes clairs…”
Ah, então eu sorrio, não posso deixar de sorrir, e dou-lhe troco:
– “A des reflets d’ argent…”
E ele remata:
– “La mer!”
E rimos. Milagrosamente.
– É a minha canção preferida. A minha mãe embalava-me com ela e reconforta-me sempre quando estou triste. Devia ouvir mais isso, fazia-lhe melhor.
Que poderia eu responder? Assenti com a cabeça, como se acreditasse que sim, que tudo depende da canção certa, mas como poderia rebentar a esplêndida bolha de sabão de um polícia amável que irrompe nas nossas vidas para dar conselhos musicais e contar memórias de infância?
Recomendou-me que respirasse o ar marítimo e só depois retomasse viagem. Despediu-se com um insólito “as melhoras”, mas antes de deixá-lo entrar no carro, ainda lhe atirei:
– Sabe que o primeiro rascunho da letra foi escrito em papel higiénico?
Ele não sabia.
– O Charles Trenet seguia de comboio, junto ao mar, apeteceu-lhe escrever e não tinha papel, não lhe restava outra alternativa que a de ir roubá-lo à casa de banho.
Ele ri e nada responde, enquanto entra no carro. Não dá, está bom de ver, a mesma importância que eu aos fait-divers.
O ar marítimo diz-me pouco e volto ao carro, sem fado nem choradeira. Ligo o rádio e poderia dizer-vos que, por casualidade, estava a passar o “La Mer”. Mas nisso vocês já não acreditariam.
Foto: Carla Olas
Magnífico. Obrigado.
Fantástico! Ajudou-me a começar o dia com sol! Obrigada!!!
Excelewnte prosa. Paraa ser excelente é verdadeira. Acredito sim que quando entrou no carro estava a passar “La Mer”.
A humanidade está em si e em que a lê.
Ah, quem dera a leitura se estendesse e a narrativa abandonasse o recorte da crônica e avançasse conto a fora, ou, quiçá, fosse trecho de um romance… eu me deixaria levar páginas a fio… que delícia de prosa! (apesar de algumas palavras me serem estranhas por ser brasileira: o que vem a ser “berma”? Seria acostamento? O que é “um grande nabo”? Um estafermo, um tonto, um bocó, um tolo, um idiota, talvez?)
Muito obrigada, Aurea. Não conhecia o termo “acostamento”, mas por aquilo que consegui encontar online tem o mesmo significado que berma. E quanto a “nabo”, a sua interpretação está perfeita 🙂
Grata por me esclarecer! Gosto destas peculiaridades da Língua Portuguesa de um continente a outro. Convido para ler meus escritos: eu ficaria honrada. Um abraço!
Áurea Cristina
Belíssimo, fez-me começar o dia muito bem. Muito obrigado.
Obrigado, Carla. Outra vez!
Que há textos assim, já sabia. Não sabia é que há polícias assim…
Muito bom, Carla.
Que maravilha, obrigada a todos.
Muito, muito bom ! E sim acredito que se tivesse ligado a Smooth poderia ouvir “La Mer” … faz parte da curta playlist que têm 🙂
Ah, o meu segredo foi descoberto 🙂
Ah já me esquecia … Eu por mim prefiro Les copains d´abord de Brassens mas isso é (seria) outra história.