O meu pai, o imortal

Os médicos chamaram-nos para que estivéssemos por perto naquelas que seriam as últimas horas de vida do meu pai. O telefonema apanhou-me à porta do hospital, prestes a entrar, mas não me surpreendeu. A única novidade era precisar de forma tão brutal o tempo restante, mas esse tempo está contado há tanto tempo que parece sempre escasso, ainda que elástico, porque o meu pai tem sobrevivido sempre, contra todas as expectativas. Desta vez não havia expectativas, não mais do que horas. Encontrámo-lo sedado, o que acabou por ser um alívio. O que mais me atormentava era a possibilidade de ele ter consciência da iminência do fim. O monitor lançava dados alarmantes, por vezes apitava histericamente, os enfermeiros, compreensivos e contristados, correram as cortinas para que a despedida fosse íntima, e um médico, que já nos tinha explicado a gravidade da situação com palavras rigorosas e um tom suave, veio vê-lo e murmurou o veredicto: “nas próximas horas”.

O meu pai e o monitor, o monitor e o meu pai, assim andaram os meus olhos durante a manhã, a seguir uma linha que não sei interpretar, a atentar no peito cansado que ainda se elevava. Chamaram-me para avisar da presença de um visitante inesperado, eu tive de sair para explicar-lhe a situação, estive fora uns dez minutos, e quando voltei o meu pai estava desperto e totalmente a leste do que se passava. Estava um pouco aturdido, lembrava-se do desfibrilador mas mais pelo susto do que pela consciência da gravidade que ele pressupunha, e era preciso mantê-lo tranquilo e pouco perguntador. Estava vivo.

Demorou a recuperar a lucidez, mas conseguiu-o. Quando se deu conta de que eram quase quatro da tarde, surgiu a pergunta inevitável:

– Então e eu não almoço?!

Ora aí estava um problema. Os moribundos não comem, não é suposto, e quem o tinha visto quase morto pela manhã, ressuscitado a choques, presumiu que não haveria de estar vivo à hora da sopa. Mas estava e tinha fome.

O médico mostrou alguma surpresa mas apressou-se a dar indicações para que lhe arranjassem qualquer coisa. Veio o chá, um pão com manteiga. O meu pai devorou-os enquanto repetia que não percebia por que ninguém o tinha chamado para almoçar. A seguir pediu o jornal. Mas a minha mãe, que costuma trazê-lo, tinha saído a correr para o hospital para despedir-se de um moribundo e não lhe passou pela cabeça trazer jornais. Recomendou-lhe que repousasse, que o jornal ficava para outro dia. O meu pai começou a suspeitar de que estavam todos doidos menos ele.

– Ora! – resmungou – O jornal lê-se sempre.

Ao pedido dela de que baixasse a cama para poder descansar, ele respondeu manobrando o comando da cabeceira para pô-la na posição de sentado, e pedindo-me que lhe chegasse os óculos e a sua revista de “sopa de letras”. Até eu, que o conheço tão bem, fiquei espantada.

– Vais fazer sopa de letras?! – perguntei ao moribundo.

– Tenho que entreter-me com alguma coisa, não?!

E então, felizmente, tive o meu momento de lucidez, decidi mandar às urtigas toda a razoabilidade, o expectável, as probabilidades, porque me lembrei (como pude esquecer-me?!) que era o meu pai quem ali estava, o invencível, e fui a correr ao quiosque. Quando regressei, encontrei-o à conversa com outro visitante que viera despedir-se e ficara sem saber o que pensar. Como se adivinhasse o que nos passava a todos pela cabeça, o meu pai resumiu a sua existência com luminosa clarividência e aquela forma sua de rir-se de si mesmo: “Já dei tantos pontapés à morte que começo a pensar: eu serei imortal?” Nem imaginas, pai.

Pus-me a fazer com ele as palavras-cruzadas do jornal, e há tantos anos que eu não fazia palavras-cruzadas. Eram uma das nossas formas de diálogo, quantas vezes os conflitos se resolviam assim. 4 Vertical – cada um dos pequenos orifícios da pele, quatro letras: poro. 10 Horizontal – prenúncio de algum perigo, 6 letras: ameaça. 5 Vertical – ferro temperado, 3 letras. aço. Apareceu o médico, ficou a olhar-nos sem dizer palavra, olhava para nós e para o jornal, para nós e para o jornal, e perguntou o que era evidente, mais para confirmar a si mesmo que estava a ver bem.

– Está a fazer palavras-cruzadas?

O meu pai confirmou que era o dia de todos perguntarem coisas absurdas, mas não estava para aborrecer-se. Voltou a explicar que tinha de entreter-se enquanto ali estava. Coibiu-se de dizer que desta vez eu não lhe tinha levado nenhum policial para ler. Saí para fazer umas chamadas, sem conseguir deixar de rir no dia que era suposto estar destinado às lágrimas. Quando voltei, lá estava o espaço dele, na grande sala, fechado por uma cortina opaca até meio e transparente em cima, ali um sinal frequente de que o doente está numa situação crítica e os familiares estão a despedir-se. Só que por detrás da cortina do meu pai, viam-se as folhas de jornal, que ele pachorrentamente ia virando.

Tinha fome, contava piadas, interessou-se pelo ministro demissionário, quis saber como estava o surto da legionela. Às oito da noite do dia em que deveria ter morrido, interrompeu a conversa comigo para chamar a enfermeira que passava junto à cama. Alarmei-me, pensei que estava a sentir-se mal.

– Não se importa de mudar a televisão para o canal 1? Está quase a começar o telejornal. E já agora, abra-me a cortina, se faz favor.

O moribundo sacudia, assim, os agoureiros que lhe tinham fechado a cortina para que pudesse morrer com toda a privacidade. Ele não queria privacidade, não queria morrer no dia que lhe tinham marcado na agenda, e preferia ver o telejornal, se não fosse maçada. Vimos as notícias, eu dei-lhe a última refeição que afinal não foi a última, um esparguete sem graça, de vez em quando ainda espreitava o monitor só para deitar-lhe a língua de fora, e o médico seguia-nos ao longe, com um meio sorriso.

Eu não me iludo. Mas agradeço mais esta lição do meu pai. Aproveitamos a vida até à última gota, e se ela nos oferece choques eléctricos e esparguete requentado, nós só prestamos atenção ao que ela tem de inesperado e palpitante, de reconfortante e prazenteiro, e a cada segundo conquistado saboreamos a vitória. Tenha ele o tempo adicional que tiver, o meu pai é mesmo imortal.

Comments

  1. bonito, gostei

  2. Bem gostava que tivesse sido assim com o meu pai. E fico feliz por continuar a tocar, beijar, conversar, brincar com o seu pai. Um abraço.

  3. Bom.

  4. Emocionas-te! Mas que raio essa coisa de se esquecerem do almoço do senhor, não me parece nada bem.
    Que a força não lhe falte para que os chutos continuem a ser fortes e poder espantar a dama de negro para bem longe e durante muito tempo.

  5. Rui Esteves says:

    Gostei muito e, nem sei porquê, fez-me lembrar uma cena do cinema italiano, num filme do Pietro Germi ou do Dino Risi.
    Oxalá que o seu pai recupere e continue com as suas rotinas.

  6. Fernando Torres says:

    Lembra-se do conto do Miguel Torga, onde o personagem principal é o Ti Alma Grande?
    Há uma grande analogia!

  7. José Neto says:

    Que o seu pai viva ainda muito e, sobretudo, feliz.
    E, quando partir, não chore; sorria por ele ter existido e ser seu pai (parafraseio aqui um texto que não é meu)

  8. Que tudo corra pelo melhor, Carla. Obrigado pela partilha…

  9. Inspirador! Só se morre quando se deixa de viver, ora porra! O seu Pai tem toda a razão. Quem me dera ter sido assim com o meu…

  10. Um grande abraço a um homem que à Morte diz um- Espera lá que ainda tenho umas coisas para fazer. Fica quietinha, vai fazer umas palavras cruzadas e entretém-te com qualquer outra coisa.

    Passei por isto, mas a morte estava irredutível no dia em que a minha mãe morreu.

    Não há ninguém que aconselhe a Morte a divertir-se com outras coisas? Assim do género daquelas tretas de aconselhamento para ocupação de tempos livres, como ir ao ginásio, comer bem e saudável, dar longas caminhadas, socializar com os amigos, ir ao cabeleireiro, fazer umas colorações, ir às compras e assim….

  11. Costuma acontecer isto, e é uma grande sorte que assim seja: a partilha ajuda-nos a resgatar o melhor de cada situação. E não há dúvida de que me ajudaram a fazê-lo.

  12. Joam Roiz says:

    Um verdadeiro hino à vida, ou seja, à naturalidade da morte. Nós, enquanto sociedade, varremos a morte para o caixote do lixo: deixamo-la nos lares, nos asilos, nas casas de repouso; e fugimos. Não conheço Carla Romualdo nem o seu pai. Um abraço fraterno e solidário aos dois: à Carla Remoaldo, que não foge da morte; ao seu pai que exaltou (e, espero, por muitos anos, possa continuar a exaltar) a vida.

  13. Do meu pai, dizia a minha mãe que ela proclamara, no leito, que quando não conseguisse afinar a viola, estaria a um passo do outro lado. Assim proclamou, assim se fez, certo dia de há mais de 60 anos, quando não conseguiu dedilhar aquela viola que lhe trouxe uma certa imortalidade nos bailaricos da aldeia e que fez dele um dos mais requisitados entre o mulherio.
    Da minha mãe, a luta impossível contra o coração que nunca parou de lhe pregar partidas, até à partida final. Já lá vão mais de 50 anos desde que, depois do jantar, fui vê-la ao hospital, oxigénio a velar pelo último fio de vida.
    É por isso que nunca me canso de me emocionar ao tomar conhecimento de lutas destas com final feliz, e que fazem de nós “gente feliz com lágrimas”.
    Tu mereces, Carla. Mereces essa imortalidade.

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