Lettres de Paris #72 et #73

Le jour avant le jour avant le jour avant le jour que je dois quitter Paris

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são os meus últimos dias em Paris e receio bem que esta vai ser uma despedida difícil. Que voltar à rotina, a uma pequena cidade onde pouco acontece em termos culturais, pouco que valha a pena, quero dizer, ou melhor, pouco que me agrade se assim quisermos colocar as coisas… que deixar de ver o Sena quase todos os dias, que deixar de ver a pequena Place Saint-Andre-des-Arts todos os dias, que deixar de dizer Bonjour à estátua de Monsieur Montagne e de lhe tocar levemente no pé dourado muito amiúde, que deixar de ver a torre da Sorbonne, que deixar de comer os eclairs au caramel da Pradier, que deixar de ver as montras da Compagnie, que deixar de comer confit e magret de canard, que deixar de percorrer a pé e de autocarro todas as ruas de Paris, que deixar de ver as extraordinariamente comoventes (não me perguntem porquê mas aquilo comove-me) da Catedral Ortodoxa Russa, que deixar de ver a Tour Eiffel a iluminar-se tout brillante, que deixar de ver a Pont Neuf e os barcos no rio, para dizer apenas algumas das coisas de que vou sentir, pelo menos nos primeiros tempos, muito a falta, vai ser, sei-o bem, extraordinariamente difícil para mim. Deixar de ver esta beleza, esta grande beleza, de ter os sentimentos que Paris, toda a Paris, mesmo aquela mais feia, me provoca quotidianamente, vai deixar-me triste por uns tempos.
 

Bem sei que Paris está a pouca distância de Lisboa ou do Porto, de avião. Bem sei que há voos low cost, bem sei que… não será a última vez que verei Paris, mas tenho quase a certeza que nunca mais a verei desta maneira, com este detalhe, com esta familiaridade que hoje sinto, com esta sensação de que, agora sim, poderia ser daqui, ou aqui viver e ser contente praticamente todos os dias. Não que eu não seja contente na pequena cidade onde vivo há muitos anos, mas não é de todo a mesma coisa. As pessoas precisam de mundo, creio eu. E Paris é o mundo inteiro dentro de uma só cidade. É verdade que os franceses, e os parisienses sobretudo, podem parecer arrogantes, mas talvez não exista outro povo tão civilizado no que toca ao respeito pelos outros, pelas diferenças, ou pela tentativa de promover a igualdade. É certo também que por vezes essa tentativa vai longe de mais, que por vezes procuram acabar com a diferença tout court, com maus resultados diga-se. Mas em geral, esse respeito e essa civilidade notam-se em praticamente toda a parte. Isto faz de Paris uma cidade simultaneamente amável e distante e, sabe deus como por vezes essa distância me é tão necessária na minha vida de todos os dias. Aqui as pessoas são amáveis em geral, porque são civilizadas, mas sabem manter as distâncias. Eu gosto disso, apesar de saber que isso nem sempre será exatamente bom.
 
Devo dizer que em toda a parte encontrei simpatia. Aqui e ali, sim, posso ter experimentado a arrogância que se atribui aos parisienses. Mas na maior parte dos casos, apenas amabilidade e simpatia. E, apesar do distanciamento, até alguma proximidade e reconhecimento. Paris não me tem tratado mal e estou segura que não me tratará mal no jour avant le jour avant le jour que a devo deixar. Uma das coisas que mais gosto, talvez por ter o síndrome do habitante de uma cidade pequena, é de andar pelas ruas, sem conhecer ninguém, sem querer conhecer ninguém, sem querer conversar com ninguém. E isso ser perfeitamente possível aqui. Agrada-me esta sensação de que estou sozinha no meio de muita gente. De que posso escutar as conversas e observar as pessoas sem ninguém me prestar a mínima atenção. Paris possibilitou-me isso, também, em grande medida, como me possibilitaram isso todas as viagens que fiz por períodos maiores de tempo. Aprecio essa solidão quase absoluta, essa liberdade de estarmos só connosco. É por isso que prefiro viajar sobretudo sozinha e estar sobretudo sozinha (espero que estejam a reparar nos ‘quase’, nos ‘praticamente’, nos ‘sobretudo’… já que neste caso são palavras importantes).
 
Hoje de manhã fui à École des Hautes Études en Sciences Sociales, ouvir um orador fascinante que falou sobre os ‘campagnoles terrestres’… os campagnole são uma espécie de ratos parecidos com os ratos do campo, com um ar bestialmente simpático e fofo mas que espalham doenças e estragam as culturas agrícolas. Em Paris pode-se fazer investigação sobre o impacto dos campagnoles terrestres no mundo rural e na agricultura e ninguém se rir com isso e toda a gente achar importante esta investigação. Eu mesma a acho importante, diga-se, e por isso lá fui. O debate foi, como sempre, absolutamente fascinante. Imagine-se falar de campagnoles com uma elevação e elaboração bestiais! Eu adoro Paris, também por isto, já o disse na carta anterior, por esta elevação dos debates, esta profundidade, mesmo que se discutam os assuntos mais impensáveis do mundo. Adoro a liberdade dos investigadores franceses e o modo como a cultivam e, sobretudo, a defendem, não venha um campagnole qualquer e a destrua como aos legumes nas hortas. Tenho conversado alguma coisa com os meus colegas e a verdade é que eles se estão nas tintas para rankings, para factores de impacto, para o que quer que seja que caracteriza hoje as universidades no (resto do) mundo ocidental. Se querem estudar ratos do campo, estudam! Se querem publicar apenas em francês, publicam! Se se entregam a tudo isso com um entusiasmo que raramente vejo onde quer que vá, se publicam mais livros do que provavelmente em algum outro país, parece-me que não estão a fazer as coisas mal. Também vou ter imensas saudades disto, desta liberdade e desta capacidade de debate, deste amor ao debate das ideias e não de quanto valem as mesmas se forem publicadas na revista A ou B ou C. Falo das pessoas das ciências sociais, bem entendido. Nas outras áreas não sei dizer.
 
Depois da palestra e debate sobre les campagnoles, os ratos do campo, eu, um rato evidentemente da cidade, ‘always a shoe made for the city’ como canta o Rufus Wainwright* numa música que ouvia muito quando estive três meses em Florença, não sei já explicar porquê, ‘Cigarettes and Chocolate milk’, meti-me no autocarro 96 para regressar à Place Saint-Michel. Mas como tinha fome, já passava da hora do almoço, saí antes para ir a uma das brasseries da Rue de Buci. Assim fiz. Mas distraí-me com as paisagens da cidade, com os prédios, as cúpulas das igrejas, e comecei a andar e andei mais do que devia. A certa altura encontrei-me outra vez em frente à Pont des Arts, hoje não fechada por uma barreira de polícias. Estava sol, um céu azul sem mancha de nuvens, o Sena (a Sena) brilhava em ondulações magníficas, os barcos cruzavam todas as pontes de Paris, e eu entrei na Pont des Arts e sentei-me num banco, exatamente a meio. De um lado a Pont du Carroussel e uma parte da Tour Eiffel a espreitar entre os prédios do Quai Voltaire, do outro a ponta da île de la Cité atravessada pela Pont Neuf. De um lado o Palais do Louvre, do outro o Institut de France. Fiquei longamente a olhar para o Sena, dos dois lados da ponte. A apanhar sol (que pouca diferença fazia contra o frio), para o Palais du Louvre e para o Institut de France. Havia muito pouca gente sobre a ponte. E deixei-me ficar para ali longos momentos, a apreciar a beleza daquilo tudo. A pensar que dificilmente voltarei a ter esta sensação. De estar rodeada de Paris, quase abraçada por toda a beleza de Paris, num dia luminoso e frio. Um dia glorioso de inverno. A pensar que já tenho saudades, agora que faço as despedidas aos lugares de que mais gosto na cidade, disto tudo. De estar sentada num banco, sozinha, sem conhecer ninguém, nem ninguém me conhecer, sem querer conhecer ninguém, nem que ninguém me conheça, nesta cidade que é sobretudo sentimento.
 
À noite fui jantar com a Fabienne, a um restaurante fantástico, o Bouillon da Rue Racine. Gosto da Fabienne, uma mulher direta e também ela luminosa como a cidade. A seguir às despedidas e aos brindes, com um Saint-Emilion perfeito, aos reencontros e regressos, fui ao Le Champo, ao cinema, ver L’Économie du Couple**, de Joachim Lafosse. Também me despeço, por estes dias antes do dia em que devo deixar Paris, das muitas salas de cinema onde poderia passar a minha vida, sem nunca repetir o mesmo filme. Depois do filme, doce e agreste ao mesmo tempo, amável e civilizado, mas distante, em que as pessoas devem deixar-se, percorro o Boulevard Saint-Michel até virar à esquerda, pela Rue Francisque Gay, toute petite, e entrar na Place Saint-André-des-Arts, a despedir-me das coisas que vejo, dos lugares onde fui tantas vezes e que não sei quando voltarei a rever. Tenho saudades da minha casa, da minha vida, dos meus pais, do André, dos meus amigos, de estar sozinha comigo na minha vida ‘normal’. Tenho saudades de viajar para outros sítios. Mas hoje, o dia antes do dia antes do dia antes do dia antes do dia em que deixarei Paris, é deste lugar, deste sentimento, que sinto falta.
 
*Cigarettes and Chocolate Milk aqui 
** O trailer do filme aqui

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