A Cimeira África – UE: Esbracejando no alto mar da hipocrisia

Meia despercebida, teve lugar a 29 e 30 de Novembro passado em Abidjan, capital da Costa do Marfim, a 5° Cimeira entre a União Europeia e a União Africana, destinada a “definir o rumo futuro da cooperação entre os dois continentes”.

No final da cimeira, chefes de estado e de governo de 55 estados africanos e de 28 países europeus assinaram uma declaração de encerramento que já tinha sido depenada de passagens desconfortáveis: pelos africanos, de partes relativas a democracia, estado de direito, salvaguarda da alternância do poder e ao Tribunal Penal Internacional para crimes de lesa humanidade, genocídio e guerra; pelos europeus, de compromissos financeiros concretos. O comunicado conjunto da cimeira refere, num rol de boas intenções, quatro domínios estratégicos para o reforço da cooperação: oportunidades económicas para os jovens, paz e segurança, mobilidade e migração e cooperação em matéria de boa governação. O que o comunicado não revela é de que forma isto deverá acontecer na prática.

Plano de resgate de migrantes

O único resultado palpável da Cimeira foi o anúncio de medidas de resgate de 3.800 refugiados da Líbia – onde são tratados pior que animais, torturados, violados, vendidos como escravos, conforme um filme da CNN mostrou  aos líderes europeus e africanos presentes. A essa realidade, há muito conhecida, andaram os líderes europeus que agora se mostram muito indignados a fazer vista grossa, pois a Líbia serve de carcereiro à saída para a Europa. É um escândalo enorme saber o que está acontecendo por lá e ainda assim cooperar com a guarda costeira, desacreditada como criminosa, e com o governo central da Líbia.(…) Não se pode cooperar com um país como esse.”

O dito acordo de emergência prevê que o “governo” líbio dê acesso aos campos sob a sua alçada à Organização das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e à Organização Internacional para as Migrações (OIM), para fazerem a “triagem” de refugiados por razões económicas e por razões políticas. Aos primeiros, ca. de 80%, será dada pela UE uma ajuda financeira para um regresso “voluntário” “mais digno” aos países de origem. A restante minoria deverá ser evacuada da Líbia para o Chade e o Níger e depois de um “processo de relocalização” poderá pedir asilo a outros países africanos ou europeus.

Tendo presente o caos, sobrelotação e corrupção que imperam nos centros de detenção “oficiais” é difícil imaginar como irá o pessoal das Nações Unidas identificar as pessoas que preenchem as condições para pedir asilo, tanto mais que muitos dos migrantes não têm documentos e que é necessário tempo e uma certa logística para examinar a elegibilidade para o pedido de asilo.

Libertar os escravos da Líbia é sem dúvida da maior urgência – recorde-se que grande parte do país está nas mãos de milícias que continuarão a sujeitar centenas de milhares de migrantes à mais extrema crueldade – mas não resolve em nada os verdadeiros problemas e, sobretudo, as suas causas.

E tal como aconteceu no acordo de refugiados com a Turquia, a UE põe-se a jeito para ser chantageada – desta vez por um “estado falhado”, nas mãos de grupos do crime organizado.

Plano de Investimento Externo

Quanto ao novo “Plano de Investimento Externo” (PIE) da UE para África anunciado por Juncker, são 4,1 mil milhões de Euros (fundos públicos) que deverão ser utilizados principalmente como “garantias, instrumentos de partilha de riscos e combinação de subvenções e empréstimospara mobilizar investimentos do sector privado de 44 mil milhões até 2020, destinados a “apoiar a construção de infraestruturas críticas e ajudar as pequenas e médias empresas a obter o crédito de que necessitam para expandir as suas actividades e criar emprego”. “Uma assistência técnica substancial ajudará os beneficiários a apresentarem atividades empresariais e projetos mais maduros e financeiramente viáveis. A UE reforçará igualmente o diálogo com os países parceiros e instaurará um diálogo estruturado com o setor privado, para melhorar o clima de investimento e o ambiente empresarial nos países parceiros.”

É certo que é necessário criar empregos no sector privado para a imensidão de jovens sem perspectiva; mas não menos claro é que, mais uma vez, a UE se posiciona de forma a alavancar com fundos públicos também os investidores europeus – para projectos de duvidoso efeito no que toca a melhorar a vida das populações – e a abastecer as agências europeias que providenciam assistência técnica.

Johannes Hahn, Comissário da UE responsável pela pasta Política Europeia de Vizinhança e Negociações de Alargamento, declara abertamente: “É necessário que os nossos esforços sejam apoiados pelo envolvimento do setor privado e pela consecução de um ambiente empresarial mais propício para que este setor possa prosperar. Promovendo o crescimento sustentável nos países europeus e africanos nossos parceiros, estamos também a oferecer novas oportunidades de comércio e investimento às empresas e aos investidores da UE.“  Pois.

Claro que isto também não agrada a muitos governos africanos, que preferem mais cooperação estatal para o desenvolvimento, para melhor poderem meter a mão na massa. O governo da Costa do Marfim, considerado um exemplo positivo, impediu todas as ONGs de participarem na cimeira e proibiu-as de realizarem um encontro à margem da mesma; assim é tratada a sociedade civil em nome da qual tudo isto é feito. Não admira que grande parte dos cidadãos africanos nada esperem destes encontros.

Conclusão

“Investir na juventude para um futuro sustentável”, “um novo capítulo” nas relações entre a Europa e África… “o sucesso da cimeira”… são os discursos ocos e hipócritas dos chefes de estado de ambos os lados. Organizações de desenvolvimento, como a ONE, denunciam a falta de resultados e falam de uma “amarga desilusão para a juventude africana”. “A cimeira não atingiu o seu objectivo, não houve progressos reais“, afirmou Reinhard Palm, coordenador do departamento África da organização Pão para o Mundo. Enquanto a UE colocar em primeiro lugar os seus próprios interesses, como o aumento das exportações e o controle dos movimentos migratórios, a situação económica e a perspectiva dos jovens em África não vai melhorar significativamente.“(tradução)

Quando o presidente da Costa do Marfim, Alassane Ouattara, afirma que “a nossa dependência mútua nunca foi tão forte”, é fácil de entender onde quer chegar: Uma população africana a crescer aceleradamente (segundo cálculos da ONU, duplicará para dois mil milhões até 2050), em que 2/3 têm menos de 25 anos, vai exercer uma pressão cada vez maior, procurando a sua sorte onde as condições de vida sejam melhores do que nos seus países – grande parte dos quais dominados pela corrupção, conflitos, falta de serviços públicos e de oportunidades de emprego. Perante essa pressão, de nada vai adiantar a actual estratégia europeia de transferir as fronteiras da UE para o continente africano, pactuando com déspotas para manterem os migrantes à distância. Não, nada vai deter a migração: nem milhões, nem arame farpado, nem acordos com déspotas corruptos.

É imprescindível que os governantes africanos assumam a responsabilidade pela situação nos seus países e sigam princípios de boa governação, da mesma forma que é indispensável que:

– a UE deixe de inundar os mercados africanos com os seus subvencionados produtos europeus (ou restos deles, como miudezas e asas de frango, concentrado de tomate ou leite em pó) que destroçam a economia local e a base de subsistência dos pequenos agricultores;

– os acordos de parceria económica entre a Europa e os países africanos sejam configurados de modo a não continuarem a dificultar a construção da zona de livre comércio africano;

– os investimentos públicos sejam feitos em programas que realmente ajudem a melhorar a vida da população local e não em megaprojectos das multinacionais europeias;

– as frotas pesqueiras da UE (e da China, Japão…), com os seus navios gigantes, deixem de devastar os mares e roubar a subsistência aos pescadores locais na costa africana;

– a indústria do armamento europeia deixe de abastecer os focos de conflito.

Tudo isto custa mais à Europa do que distribuir benesses ao sector privado e aos déspotas, mas é mais urgente, mais eficaz e mais controlável. Exige sim, é a aceitação da necessidade de redistribuir a riqueza. Mas isso tem demais que se lhe diga.

Comments

  1. Continue assim, Ana, essencial se torna cada vez mais o pessoal ter consciência e informação idónea . Bem haja.
    Mesmo que saibamos que se trata de ” discursos ocos e hipócritas dos chefes de estado de ambos os lados” , denunciá-lo entre nós torna-se mais e mais importante !

  2. JgMenos says:

    E que tal uns programas de colonização temporária?
    Aí uns dois planos quinquenais como mínimo.

    Nada medra na corrupção e nepotismo africano.
    Só a força lida com semelhante praga.

  3. Ana, mais uma vez admiro esta denúncia importantíssima para mostrar o que os principais jornais não mostram para estar em acordo com os maiores criminosos deste mundo que desejam uma fortuna desmedida a custa da miséria dos nossos irmãos africanos,principalmente.

    • Ana Moreno says:

      Obrigada António Medeiros, tenho a sorte de ter acesso a informação pública de óptima qualidade (não em Portugal)… 🙂

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