Pandemia climática

Um ano depois, a sociedade, a economia, a política e o mundo em geral continuam reféns da crise pandémica, resultante do surto da SARS-CoV-2, a.k.a. covid-19. Lá longe vão os tempos dos arco-íris, do “vai ficar tudo bem” e do “vamos sair disto melhores pessoas”. De lá para cá, o business as usual voltou aos comandos da nossa mothership, de onde na verdade nunca saiu, e o novo normal não difere muito do velho normal. Os zilionários enriqueceram estrosfericamente com a crise, como sempre acontece com qualquer crise, com as 20 maiores fortunas do planeta a crescer na ordem dos 24%, durante o ano de 2020 (números da Bloomberg). Os pobres estão mais pobres, os remediados estão mais perto da pobreza e o fosso entre a super-elite e os demais aprofundou-se. O primeiro mundo luta entre si pelo acesso a mais vacinas, enquanto o terceiro depende da caridade do primeiro, que surge sob a forma de grandes operações de marketing, com grande mediatismo e poucos efeitos práticos. Micro, pequenas e médias empresas submergem sob o peso da burocracia e da inação política, contribuindo para o fortalecimento dos monopólios do costume. O desemprego e a miséria crescem, a precariedade e a exploração laboral florescem e a ausência de esperança é combustível para os novos populistas, que se alimentam do caos e da revolta.

Paralelamente a este cenário dantesco, momentaneamente esquecida ou relegada para segundo plano, a verdadeira pandemia avança, silenciosa e implacável, sem que nada ou quase nada seja feito para a travar. A tal crise climática, que nos arrasta, perigosamente, para um ponto sem retorno. A propósito, a directora de Saúde Pública e Meio Ambiente da OMS, María Neira, alertou no mês passado para a ligação entre o actual e anteriores vírus, como o Ébola ou o HIV, e os efeitos nefastos provocados pela acção humana no mundo natural. A médica espanhola aponta para a longa lista de vírus transmitidos de animais para humanos, que se relaciona, em larga medida, com a destruição de florestas tropicais. E se a palavra “Amazónia” é a primeira que nos vem à cabeça quando se fala em destruição florestal, é importante sublinhar que a coisa não se resume ao pulmão do mundo. Basta olhar com um pouco de atenção para aquilo que tem acontecido em zona como o Sudoeste asiático, para perceber isso mesmo.


Para Neira, a alterações climáticas devem ser encaradas como um problema de saúde pública, não como mera questão ecológica. Porque a cada hectar de floresta que a acção humana destrói, regra geral para servir os interesses expansionistas da indústria agropecuária, milhares de espécies são expulsas dos seus habitats naturais, muitas das quais entram em contacto com humanos, a quem transmitem as mais variadas doenças, para não falar no efeito destrutivo nos solos e cursos de água, contaminados pelo uso intensivo de pesticidas e outros químicos geneticamente alterados. O surto do vírus Ébola, por exemplo, resultou, afirma a especialista, da destruição de florestas na África Ocidental, que levou à destruição dos habitats naturais de milhares de morcegos, que entraram nas povoações e transmitiram o vírus aos humanos. María Neira vai mais longe e afirma mesmo que 70% dos surtos pandémicos da nossa história recente “tem a sua origem no desmatamento e nessa ruptura violenta com os ecossistemas e suas espécies”.

Esta relação entre surtos pandémicos e deflorestação, claro, é apenas uma parte de uma realidade mais ampla e assustadora, que passa pela destruição dos ecossistemas marítimos ou pelo degelo dos polos. E muitos continuam a encarar a situação com a tónica na importância de salvar o planeta, quando é a humanidade que precisa de ser salva. O planeta, afirma a directora da OMS, “vai encontrar maneira de sobreviver; os humanos, não”. E a solução, parece-me evidente, passará por uma mudança radical de hábitos, alimentares, de consumo ou de mobilidade, sem a qual estaremos condenados a lidar, ad eternum, com inúmeras ameaças à nossa saúde e subsistência. A actual pandemia é apenas uma amostra daquilo que nos pode esperar, se não tivermos a coragem de mudar.

Comments

  1. Abel Barreto says:

    Uma gralha: “químicos geneticamente alterados”.
    Resta saber se o bom senso prevalecerá sobre a ganância e o egoísmo.

  2. luis barreiro says:

    E os mais pobres ainda gritam por mais confinamento em favor dos mais ricos capitalistas.

  3. Parabéns. O texto do João conseguiu a proeza de descrever a aterradora situação actual sem nunca referir o sistema que a causa.
    Porque será?????

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