De quem são as nossas experiências?

Estou em crer que não haverá nada mais genuíno do que a capacidade de sentir empatia por outro ser. Acredito nisto porque não considero a empatia algo exclusivamente humano. Porque a sentimos nos animais, por parecerem ser capazes de sentir as emoções uns dos outros e também dos humanos. E isso faz-me crer que, escondido nos confins dos mistérios do universo que nunca chegaremos a compreender, a empatia tem um lugar muito próprio e apropriadamente seu.

Mas, como tudo na vida, como vamos percebendo ao longo do caminho que vamos trilhando, a empatia tem também os seus prós e contras. Ao mesmo tempo que nos une, que nos liga, que nos oferece a capacidade de sentir o que sente outro ser, também nos faz correr o risco de perdermos a nossa identidade nesse processo de identificação exterior a nós próprios.
Sou sensível ao desejo, nomeadamente humano, de fazer parte de algo. Seja de uma equipa, de um grupo, de uma associação, seja mesmo num simples grupo de amigos. Ser parte e sentir ser parte é um mecanismo que conforta a solidão que acredito que todos sentimos enquanto seres humanos. A solidão da nossa mente, dos nossos pensamentos. A solidão que vem de uma sensação de incompletude que parece nunca se sarar. E nesse processo, acabamos por ir buscar pedaços de nós onde… Sentimos.
Porque acredito que a mente e o coração, ou a alma, ou o sinto de onde vêm os sentimentos, têm uma ligação directa. Acredito que quando sentimos, somos puxados para o que nos faz sentir de facto.
E é aí que entra o perigo da empatia. O perigo de nos perdermos em tanta coisa que sentimos. O perigo de nos sentirmos ligados à emoção de alguém de quem gostamos e ficarmos aí, presos. O perigo de no meio de tantas identificações perdermos a nossa própria identificação. Já aqui tinha falado de não vivermos uma vida pensada por outros, sob pena de ela deixar de ser nossa. A verdade é que, em último caso, talvez nos tenhamos de proteger da empatia. De criarmos mecanismos de defesa contra os seus perigos, sabendo sempre que ter a capacidade de criar empatia com o outro é das melhores características que podemos ter.
E eu acho que um dos melhores mecanismos de defesa é distinguirmos os vários “sentires”. As suas intensidades, as suas formas de mexer connosco. Eu posso sentir empatia por um animal abandonado na rua. Mas só vou dedicar a minha vida a salvar todos os animais de rua se o que sinto, se o chamamento que essa empatia me dá, for tão grande que não me deixe pensar em mais nada. Mas, se não dedicar a vida a salvar todos os animais, não sou pior pessoa. Simplesmente não é esse o meu propósito.
E da mesma maneira que falamos em animais de rua, falamos de tudo um pouco, podendo aplicar este raciocínio a qualquer outra situação. Acredito que o sentir é a parte mais verdadeira que temos. Acredito que quando estamos sós, a nossa mente foge para onde devemos estar. E talvez o nosso processo de vida seja esse, o de deixar a mente dizer-nos onde devemos estar, onde sentimos que devemos estar, e ir até lá. Infelizmente, a vida não tem manual de instruções. E vão acumular-se e acumular-se situações em que estamos perdidos, sem saber o que fazer. Acho que devemos recorrer ao sentir. Onde somos felizes. Onde temos a certeza de que somos felizes.
E esse caminho de nos alinharmos com a nossa mente, essa que tem uma ligação directa ao sítio de onde vêm os sentimentos e as emoções, é a nossa experiência. Nossa. Protegendo-nos dos perigos das identificações que nos possam fazer divergir do nosso caminho. Porque se formos acumulando experiências e experiências, ligados à empatia, ligados a um conjunto enorme de identificações, sem sermos verdadeiros com o que sentimos de uma forma mais pura, corremos o risco de, no final, quando a vida nos passar em fita de filme, percebermos que as nossas experiências… não foram nossas.
Quem sabe talvez seja esse o sentido da vida. De sabermos ir de encontro aos nossos pensamentos. Ir de encontro para onde nos leva a nossa mente quando paramos, respiramos fundo, e pensamos, sentindo. O que levamos da vida é o que perdura. Não é o que sentimos, temporariamente, em relação àquele animal de rua. É o que sentimos sempre, permanentemente. É o que pensamos. É o que nos faz felizes, o que perdura. Aí sim, podemos responder à pergunta deste texto. Quando vamos em direcção ao que perdura, as nossas experiências… são nossas.

Comments

  1. JgMenos says:

    O medidor de felicidade determinado pelo sentir vem enchendo o inferno (algo que só o pensamento determinou o que seja).
    A empatia tornada dever, a felicidade tornada direito, é ao pensamento que cabe determiná-las como padrões para a vida.

    • POIS! says:

      Pois mas…

      Não concorda V. Exa. que uma ansiedade vestibulante, acompanhada de uma conceptualidade ectópica pode tornar desmesuradamente volátil uma elucubração psicogénica?

      Urge o retorno. Encontramo-nos pulicidas!

    • Filipe Bastos says:

      Eis a essência do que o Jg diz todos os dias:
      — o mundo é cruel e injusto
      — ninguém pode ou deve esperar nada de ninguém
      — a propriedade é sagrada; o resto é secundário
      — do berço à cova é cada um por si; quem sugerir o contrário só pode ser demogogo, oportunista ou ladrão.

      Conheço mais pessoas que pensam assim. Mesmo acreditando nisso, não se aborrece de uma perspectiva tão triste e limitada? Resigna-se à ‘rat race’? A viver como um hamster numa roda, a apregoar as virtudes da ganância e do egoísmo?

      Um dia rebenta o clima, um asteróide ou um vulcão. Morremos todos como os dinossauros. De que valeu, diga lá, a sua moral direitalha e tacanha, as suas palas de esforçada formiguinha, toda a vida a levar a sua palhinha, asinha, asinha?

      Não pergunto com acrimónia; é só curiosidade.

      • JgMenos says:

        Diz o que gosta de acreditar que seja a direita.

        Acima escrevi: A empatia tornada dever, a felicidade tornada direito, é ao pensamento que cabe determiná-las como padrões para a vida.
        Em que é que isso casa com a sua arenga?

        Sendo certo que o pensamento não é a ‘doutrina do coitadinho’ com que a esquerdalhada gosta de se querer acreditar por tão boazinha, que parte a assaltar de boa consciência!

        • Filipe Bastos says:

          E que empatia oferece a sua direita? Só se for para com banqueiros e ‘empreendedores’. Que padrão tem o seu lado além de ganância desmedida?

          Que vida além da rat race que mencionei, da eterna rodinha de hamster onde trabalha, poupa e investe, sempre a acumular mais um tostão, mais um tostão, até ao dia em que morrerá abandonado num lar, mas – ó felicidade! – um lar um bocadinho melhor que o do vizinho menos poupado, que não mamou no Airbnb nem investiu tão sabiamente na criptoteta?

          Gosta de lembrar a realidade à esquerdalhada; muito bem. Mas que há para celebrar na sua realidade de mamões e miseráveis, onde uma dúzia de mânfios é tão rica quanto meio planeta?

          • JgMenos says:

            O desmedido é grau, de uma comum e generalizada ganância.
            Uns querem lucros outros subsídios, e saúde e casa e mama de todo o género.

            Deixe-se de vender o homem novo e trate de viver com o velho, de modo eficiente, produtivo e com a empatia que ele possa merecer.

          • Paulo Marques says:

            Ui, saúde, casa e comida, rais parta os pobres a querer coisas!

    • Paulo Marques says:

      Então deixa de desviar impostos e promover rendas a quem só quer saber do lucro.

  2. Filipe Bastos says:

    As reflexões do César Alves são uma distracção bem-vinda da politiquice em que andamos mergulhados.

    Creio que deve distinguir-se empatia de pertença: amiúde esta até inviabiliza a empatia, como no futebol ou na política, que costumam vilificar os adversários. Para mim, empatia é um sinal de inteligência; a pertença é uma tendência inata e nem sempre racional.

    Há uma linha muito fina entre a necessidade de pertencer a algo e o carneirismo acéfalo. Basta ver a turba das redes sociais, dos clubes ou dos partidos. Pode ajudar a mitigar a solidão, como diz o César, e no tempo das cavernas o grupo era uma questão de sobrevivência. Mas esse tempo já lá vai. Dispenso rebanhos.