
Está na altura de parar um pouco, só uns minutos bastam, e rever o que se tem passado, o que temos sentido e o que temos feito. Conheço minimamente a humanidade e mesmo confessando a minha surpresa por esta reacção tão global e muito mais enérgica que o expectável, sei que esta vontade tenderá a abrandar com o decorrer do tempo.
Já falei demasiadas vezes da evidente disfunção que a neutralidade, o “apoio, mas…” ou “é preciso não esquecer que os Ucranianos antes…” traduzem. Mas não é disso que quero falar agora. O que realmente quero é chamar a atenção para algo um pouco distinto.
Quer a minha geração quer as que nos sucedem ou pelo menos estas últimas, dão como adquirido que vários valores básicos estão garantidos. Que a liberdade, a democracia, a procura da igualdade como são princípios tão essenciais, foram eternos. Obviamente que nenhum deles, no nosso mundo, o Ocidente, já está em estado perfeito, mas, como se pode ver, podíamos estar muito pior. Mas a sua clara predominância e a quase obrigatoriedade de serem respeitados, dão a ideia errada que existiram desde sempre, que não tiveram ou não têm custos e que basta existirmos para deles usufruir.
Esta nossa noção da sua gratuidade é nada menos que um insulto àqueles que tanto lutaram, sofreram ou morreram por eles ou àqueles que por esse mundo fora o continuam a fazer diariamente.
Nesta degenerada invasão, há um Povo determinado a tudo sacrificar, a arriscar o seu bem-estar, a sua ordem e até a sua própria vida para usufruir daquilo que nós achamos ser “de borla”. Perceber isto, é perceber tudo o que está verdadeiramente em causa nesta hedionda guerra.
A minha solidariedade, a minha empatia e o meu compromisso não nascem do medo do alastramento ou da mundialização do conflito. Nascem da percepção do que está em causa. Nascem a montante das armas falarem. A nossa opção, o nosso envolvimento não é determinado pela guerra em si. O momento até pode ser coincidente e realmente é-o a maior parte das vezes. Mas a razão do nosso engajamento está a priori. Está no facto de ao permitirmos que a ameaça e a agressão possam derrubar sem mais os valores que temos entranhados, estamos efectiva e materialmente a perder tudo. Por isso, aceitamos, aprovamos e aplaudimos que os Ucranianos peguem em armas para na prática fazerem o mesmo que os agressores: matar e destruir. Mas com razão. Com a mesma razão que determina o nosso compromisso.
Por isso, e sendo completamente a favor da paz, tenho que confessar que isso não me chega. Eu sei que é fácil falar a milhares de quilómetros. Eu sei que é fácil falar quando não é a nossa Família ou não são os nossos Amigos que estão a morrer. Eu sei. Mas quero acreditar que o bem não pode limitar-se a empatar. Principalmente quando esse empate é muito mais uma enorme derrota. Eu quero acreditar que o bem tem de prevalecer. Tem de voltar a ser categórico. Até porque para a mera paz, para que as armas se calassem, bastava que a Ucrânia capitulasse. E isso nós não desejamos. Muito mais importante, os Ucranianos não o desejam nem o vão fazer.
Por isso a paz não chega. É imprescindível que quem usou diabolicamente a intimidação, o medo e a força para tentar conseguir os seus intentos muito para lá de ilegítimos, pague. É imprescindível que não voltem a ter qualquer poder que lhes possa permitir repetir o crime. É imprescindível que sejam responsabilizados pelo que fizeram.
Como também é imprescindível que a Ucrânia retome a sua integridade territorial cuja extensão pode ser posteriormente, repito, posteriormente discutida em respeito ao princípio da auto-determinação dos Povos. Como também é imprescindível que a Ucrânia recupere a sua total, repito, total soberania. Sem restrições ou condições. Se quiser pedir a adesão à Nato, poderá fazê-lo. Se quiser pedir a adesão à União Europeia, poderá fazê-lo. Obviamente.
Por isso a paz não me chega. Porque a liberdade é essencial demais à vida para prescindir dela apenas em nome da tranquilidade. Isso tem um nome: cobardia. Cobardia em nome de nada porque se o medo nos fizer entregar a nossa liberdade em troca da nossa vida, não estaremos receber realmente nada porque sem liberdade, não teremos vida. Pelo menos vida que valha a pena viver.
A paz não chega. E até por isso começo a pôr em causa o facto de ainda não sermos aliados de facto e de direito da Ucrânia.
Se as alianças fossem defensivas e a bem da liberdade de todos, era difícil ser contra. Mas não são, o que torna a solidariedade inquestionável com os povos em algo bastante mais complicado do que a favor ou contra. E há por aí muita gente, umas quantas inquestionável de ser russófila ou comunista (e quem tenha estado nos controlos da NATO na guerra fria, vejam lá) a explicá-lo.
Pois até que enfim!
Que vem a terreno alguém que conhece a humanidade.
Todos sabemos que, por modéstia, é bastante reservada e não tem sido vista em público.
Pedindo perdão pelo atrevimento peço-lhe que, quando voltar à sua intimidade, lhe apresente os nossos votos de boa saúde e felicidades.
O meu muito obrigado.