Memória descritiva: a comédia do ditador

No dia 3 de Agosto de 1968, no Forte de Santo António, no Estoril, onde habitualmente passava as suas férias de Verão, António de Oliveira Salazar teria caído de uma cadeira de lona. Segundo a versão que depois circulou, o chefe do Governo quando se preparava para tratar os pés com o calista Hilário, sentou-se pesadamente numa cadeira de lona no terraço do Forte. A cadeira não terá aguentado o peso e Salazar bateu violentamente com a cabeça nas lajes. Conta Franco Nogueira que queixando-se de dores no corpo, o ditador não autorizou a chamada de um médico, como queria a sua governanta, a D. Maria de Jesus.

O barbeiro Manuel Marques, que também teria assistido à queda, afirma que esta não se deu da cadeira. Ela estaria fora do lugar e Salazar distraidamente caíra desamparado no chão. Uma terceira versão, afirma que a queda se terá dado na banheira, mas para evitar que o País fosse sacudido por anedotas pícaras, usando a nudez do ditador como tema principal, inventou-se a história da cadeira, com descoordenação entre a versão do ministro e a do barbeiro. Para o caso não interessa, Salazar caiu, bateu com a cabeça e não se quis tratar.

As dores não passavam e ele tentava debelá-las com aspirinas. Só mais de duas semanas depois, em 4 de Setembro, aceitou que estava doente. No dia 6 foi internado no Hospital de São José. Houve discrepâncias quanto ao diagnóstico – hematoma intracraniano, trombose cerebral… mas unanimidade na urgência de operar. Em 7 de Setembro foi operado no Hospital da Cruz Vermelha. Ficou incapacitado e o presidente da República, em 27 de Setembro, nomeou Marcello Caetano para substituir Salazar. E aqui começou a comédia.

Foi o Adriano de Carvalho, um amigo do qual já aqui tenho falado, quem me chamou a atenção do potencial dramático da situação. Estávamos no Café Paraíso, na Rua Serpa Pinto, em Tomar (vulgo Corredora); ele viera visitar-me e trouxera um exemplar do Le Monde onde se dizia que Salazar não sabia que fora substituído e que os «ministros» do seu governo iam à residência de S. Bento, para reuniões do «conselho de ministros». E todos, gente que estava à frente de empresas ou em novos cargos políticos, se prestava àquela farsa.

Soube depois que aquele teatro do absurdo, dirigido pela D. Maria de Jesus, tinha uma logística complicada. Um grupo de senhoras ia todas as manhãs a S. Bento preparar os jornais para o «Senhor Professor» ler, como habitualmente. Cortavam à tesoura todas notícias que pudessem desmascarar a farsa. De vez em quanto havia falhas, mas o Professor pareceu nunca as notar ou, pelo menos, limitava-se a observações pacíficas.

As visitas das crianças das escolas, ritual que vinha desde os tempos heróicos da «Revolução Nacional» continuavam. Um dia, uma das senhoras quis brilhar e perguntou a uma menina, supondo-a devidamente amestrada: «- Diz lá, querida, quem é o Senhor Presidente do Conselho?» «- É o Senhor Professor Marcelo Caetano!», respondeu prontamente a garota, provocando o pânico entre as senhoras do grupo e as professoras. Mas Salazar não reagiu, manteve o sorriso apático e distante. Um ex-ministro do seu último governo, com o qual privei na editora, garantia-me que Salazar, nos momentos de lucidez, sabia o que se passava, fingindo que se deixava enganar. Talvez.

Em 27 de Junho de 1970, um sábado, Salazar morreu. Em Tomar, nesse dia, houve um almoço de despedida a um amigo, técnico papeleiro, que saía da Fábrica de Porto de Cavaleiros e ia assumir funções na Fábrica de Marco de Canavezes. Éramos mais de vinte no Restaurante Belavista, no Mouchão, e fizemos muito ruído. Eu, por acaso, estava com uma pólo vermelha.

No relatório que um informador da PIDE fez para a sede, dizia-se que «os comunistas tinham festejado ruidosamente a morte de Sua Excelência e que fulano (eu), levara o desplante ao ponto de usar «uma Lacoste vermelha». Só soubemos da morte de Salazar depois do almoço. Não era facto que merecesse festa e roupa especial. Salazar morrera dois anos antes ao cair da cadeira (ou na banheira). Nessa altura, quando naquele telejornal de Setembro o locutor disse que Salazar sofrera um acidente, nessa altura, sim, sentimos que as coisas podiam finalmente mudar. Depois começara a comédia. A morte física de Salazar deixou a maioria dos antifascistas completamente indiferente.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Dizias que a cor do polo era por ser do Benfica. De qualquer forma, em bem verdade, não se faz…
    Eu estava nas Caldas da Rainha, num café com o meu pai. Como fiquei esperançado, mas ainda tivemos que esperar 13 longos anos…

  2. Carlos Loures says:

    Só depois de 1974, tive conhecimento do tal relatório.

  3. maria monteiro says:

    Para mim era fim-de-semana de estudo porque na segunda-feira ia fazer exame de geografia do 7ºano. Acabei por não estudar nada mas passei no exame

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