Como diz Alba Saluar, da Santa Catarina no Brasil, o trabalho de campo em Antropologia é transformarmo-nos em nativos de nós próprios. A frase é dela de um texto retirado do organizado por Cláudia Maria Almeida de Carvalho: Teoria e Prática do Trabalho de Campo. Bem como de vários textos meus e experiências de trabalho entre os meus analisados. Por ter escrito e ensinado muito sobre trabalho de campo, parece-me mais importante contar como ele se faz sem muitas citações.
O meu primeiro trabalho de campo foi aos meus vinte anos nos bairros de lata de Valparaíso, Chile. Praticava a minha profissão entre os mais pobres dos pobres, o proletariado sem trabalho que ocasionalmente trabalhava no Porto mencionado. Mas mais que trabalhar, os habitantes do Bairro Rocuant, no cerro do mesmo nome, dedicavam o seu tempo à pilhagem, a pedir esmolas e a viver da caridade de Caritas. Eram mais de trezentos habitantes.
As casas eram construídas em zinco e o calor do aglomerado era insuportável. As ruas eram estreitas, não havia luz eléctrica para nenhum tipo de trabalho ou para ver nas ruas durante a noite, ou nas casas. Os incêndios eram quase todos os dias, por causa das velas com as que iluminar o interior das casas: casa que ardia outra aparecia de imediato, ou em barro, madeira ou zinco. Não apenas as casas que ardiam eram as novas habitações, vinham de fora a o bairro crescia.
Eram chamadas casas callampas ou cogumelos em português, apareciam aos milhares e desapareciam sempre no inverno, por causa da chuva e do frio o por ter necessidade de desaparecer dos olhos da polícia que procurava muitos deles por felonias. A mais comum, era a prostituição sem licença nem análises médicos, custava dinheiro e era o que mais faltava. A prostituição era um delito de jure. Foi a defesa de várias de varias delas, porque eu praticava e advogava e Direito Criminal, o que me levara para essa povoação callampa e assim conhecer no sítio, as suas formas de vida, como tratavam aos seus filhos todos de diferentes pais, cuidado pelas avós que entendiam esse trabalho. Recebi imensas solicitações, rejeitadas por mim na base da ideia de que um defensor no podia ser cúmplice das defendidas, era proibido esse conubio entre arguente e réu. Elas queriam ser defendida, eu nada cobrava e era conveniente essa relação de apenas cliente patrono ou de, finalmente, amigos.
Havia tantos problemas na povoação, que decidi passar a morar entre os supostos delinquentes, que, no meu ver, não tinham outra tropelia que a de no ter educação, trabalho ou defesa de ninguém. A minha primeira ideia foi organizar ao grupo como Junta de Vizinhos, com Presidente, Secretário, sócios actas das reuniões. Foi apenas uma premonição que teve resultados: as pessoas sentiam se pessoas, seres humanos, com dignidade e com um Advogado próprio que os defendia. Eles não pagavam, mas davam me comida e casa, cama..com pulgas e piolhos e sem agua para me lavar, excepto o alguidar, um jarro de ferro com agua e toalha que eu próprio levava.
A família estava escandalizada e proibiam essa relação, mas eu, desejoso de justiça, teimava e lá ia ficando. O meu exemplo foi seguido por vários outros, advogados, estudantes meus e de outros. O Arcebispo da diocese, amigo da família, Emilito Ou Monsenhor Emílio Tagle Covarrubias, solicitou me o convida se, o que eu fiz com licença do Presidente da Junta de Rocuant. Apenas solicitei um facto: que for vestido de padre e não de Arcebispo, o que obrigaria a pobre população a organizar festas e comidas e não havia dinheiro para fanfarras.
Aceitou e foi de preto, mas teve que ouvir o discurso do Presidente, Osvaldo, ocultou o apelido como manda a ética antropológica. Osvaldo fala de forma aberta e mal de padres e curas, especialmente do novo Bispo que nem se importava com eles. O anterior, esse que mais tarde na vida defenderia aos perseguidas pela policia do Ditador do Chile, Raúl Silva Henríquez que, enquanto Padre Salesiano, dava me leite e queijo para, como ele dizia:Toma, tonto,, para os teus pobres e sorria. Foi feito Bispo, Cardeal, Chefe da Igreja Católica do Chile e transferido a Santiago. Emilito sabia da história e ficou vermelho, mas ajudara-nos imenso a construir uma população de casas de madeira e as callampas desapareceram.
O segredo do trabalho de campo em Antropologia é não ter medo do lobo. Eu entrava nas casas e a população mesmo de noite e sabia que era respeitado: era uma mais-valia para eles…..Devo confessar também um segundo segredo: a princípio, fui convidado para almoçar, beberam muito vinho e a luta começou. As facas ao ar, passavam por cima da minha cabeça, tive a força dos vinte anos e a agarrei no ar e com faca em mão, ameacei chamar a policia. Ninguém me ouviu e foi preciso esconderem-me para não ser assaltado….O meu medo era imenso,mas tinha de o ocultar para não perder respeito.
O trabalho de campo em Antropologia exige a ida aos sítios mais abandonados, mostrar ajuda nas altas esferas, ou não, depende do sítio em que estamos, e ensinar os nossos estudantes a ter respeito pelos mais pobres e a tratá-los chamar por Dona ou Senhor. Os lugares de trabalho de campo exigem esse respeito para sermos respeitados. É perigoso , mas o medo fica connosco, como acontecera na expedição ao Estreito de Torres. E, finalmente, estar SEMPRE ao serviço do povo, sem arrogância ou pretensões de sabermos mais. Ali somos todos iguais para poder organizar a Pátria Pobre….
Escrevi este texto para que se saiba da utilidade social da Antropologia. Agradeço a Carlos Loures este, espero, derradeiro empréstimo de computador e de procura de i,agens. Foi em sítios como estes que aprendi o que era a vida, como se vivia e como era necessario respeitar ao prójimo. Não sou homem de fé, todos sabem, mas sou cidadão. Comecei por estes parámetros, aimda continua a andar….até que um dia já não seja mais possivel
Como tudo seria diferente se houvesse a coragem de seguir esses seus sábios segredos
Obrigada Prof Raul
Realmente, parabéns pelo teu brilhante trabalho, também penso assim, e faço a disciplina de Antropologia na UFPel, Pelotas, RS, e todas as pessoas se tratassem de igual para igual, no sentido moral, fraterno, e de uma boa convivência, realmente os problemas sociais estariam bem melhor resolvidos. Parabéns!