O natal das pessoas saudáveis

Dia de natal, sala de espera. Gente a chegar com cara de susto e de sono. Gente a cabecear nas cadeiras, a dormir sentado. Alguém comenta que no passado, não há tanto tempo assim, num dia como o de hoje estavam aqui muitas mais pessoas. O cartaz na admissão explica: são 20 euros por episódio de urgência. O cardeal de Lisboa celebra a missa na tv. Se eu estivesse em casa via um filme, comia uma rabanada. Tem-se fome e frio na sala de espera, mas não é que se tenha mesmo fome e frio, o que se tem é pena de si mesmo. O corpo pesa ao fim de umas horas, as cadeiras são duras e rangem, a vida parece sempre mais miserável.

“A luta mais importante na vida é contra a autocomiseração”, diz o bombeiro que entra agora pela porta automática. Não diz nada, é o meu sono ou a minha fome que me mentem. Se eu estivesse em casa via “O homem que matou Liberty Valance”, o filme que vejo sempre no natal. O noticiário visita a antiga sopa dos pobres, que agora é takeaway porque já não há mesas para sentar a todos. Estariam habilitados, se precisassem, a um episódio de urgência ou teriam a doença moderada pela taxa?  O cardeal entra pelos noticiários, fala de fé, a seguir vem o bispo do Porto, fala da crise. Na sala, as pessoas trocam sms e vão buscar café à máquina. A angústia precisa de pequenos confortos, gestos rotineiros. A tv é uma coisa longínqua e quem lá aparece tem a espessura de um cromo.

A seguir vem o Papa, terceiro homem da igreja a passar hoje pelo noticiário. O Vaticano é coisa ainda mais distante, as pessoas bocejam. Não há o dramatismo das urgências que se vê nos filmes, aqui é tudo lento, monótono, doentes crónicos, resultados de exames que tardam em sair, drama enlentecido, tempo enlentecido. Um vago, infantil sentimento de injustiça – todos a festejar, nós aqui. “A luta mais importante…”, recomeça o bombeiro. Tudo se amplia, a chamada que não nos atendem, o que ficou por fazer. Sempre mais gente a chegar, sobretudo velhos, alguma ambulância.

Vem um funcionário ler um aviso para os proprietários de carros mal estacionados. Mas a leitura é tão rápida e tão atabalhoada que quase não se entende nada. O homem quer chegar ao fim do texto depressa, os olhares incomodam-no. Diz “obrigadíssimo” a uma plateia que não lhe respondeu nem mostrou sinal de ter entendido alguma coisa, e foge para dentro. De quem eram os carros, afinal? Que importância tem, se o parque está vazio?

Vão chegando mais membros da família de alguém que está lá dentro há muitas horas. As mulheres beijam-se por obrigação, nenhum carinho, nenhum vínculo emotivo. Os homens atrapalham-se com os abraços, ficam-se pelos apertos de mão. Tudo é maçador, um trâmite que se quer despachar, saíram a contragosto de casa num dia de natal, comeram à pressa e nem lhes soube bem.

As pessoas saudáveis, dizia Thomas Bernhard, que sabia do que falava, não querem ter nada a ver com os doentes, não querem ter de pensar na doença, e, consequentemente, na morte. Querem estar com os seus iguais, os saudáveis, e, no fundo, dizia ele, não toleram os doentes.  Não posso citá-lo com rigor, mas sei que era isto que ele dizia, e estava absolutamente certo. Quando pudermos sair, haveremos de correr porta fora, qualquer que seja o resultado, ansiosos por pôr a máxima distância entre nós e esta sala, e esquecer o dia, esquecer a sala de espera, o natal, os velhos que saíam das carrinhas dos bombeiros, os carros mal estacionados no parque, as cadeiras a ranger.

Amanhã será dia 26 e pode ser que a normalidade seja reposta.

Comments

  1. maria celeste ramos says:

    Pois – as pessoas são e têm que ser sempre muito valentes e à medida da nossa opinião – Passsem por aquilo que passam as pesoas que não aguentam mais e já se foram tão abaixo que não aguentam mais e digam se até a alma não teria sido tão afectada que claudicou – é por isso que costuma haver os técnicos que se especializam e muitos sem saber nada de nada até pela idade – acabadinhos de fresco de serem psicólogos – que empinaram umas bosas e as despejam como se houvesse uma fórmula igual para todos como a aspirina é o medicamento universal para a dor de cabeça – E não é preciso ser homeless para se chegar a grau de impotência de se levantar e tar a tal – ai como escreveram ?? autocomiseração – por vezes chegar ao fundo será a melhor maneira e única maneira de se saber que “ali não quero mais estar” – e levanto-me – ou peço ajuda para me darem a mão e puxar para cima – Ai ai tanta virtude e inteligência que leio em alguns “aventares” – é natural em Tempo de Natal tanta “comiseração católica” – gaita

  2. maria celeste ramos says:

    E que acha de tantos que se suicidaram e nem comiseração conseguira ter ??Pema não os ter ajudado com as suas palavras tão sábias – de facto é o NATAL das pessoas SAUDÀVEIS (aparentemente pelo menos)

  3. jorge fliscorno says:

    Compreendo-te. Boa sorte.

  4. Como sempre, cara Carla, excelente! E como sempre, fica a vontade de mais…

  5. Tito Livio Santos Mota says:

    um texto muito bem escrito !!!!

Trackbacks

  1. […] A Carla já aqui escreveu -melhor do que eu o faria – sobre pessoas nas salas de espera de hospitais. […]

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