Uma vez meteram-me num aparelho de ressonância magnética para procurar uma doença que eu tinha medo de ter e afinal não tinha. Fui sozinha, vou sempre sozinha para as coisas difíceis, por feitio e por hábito de não estar acompanhada. Mandaram-me tirar a roupa e vestir um fato do hospital, depois sair para o corredor e esperar que me chamassem. As salas eram azuladas e nuas, as pessoas passavam por mim e não me viam, todas as portas tinham avisos de acesso proibido, luzes que se acendiam e apagavam. Uma central nuclear não deve ser muito diferente.
Encolhi vários centímetros e sentei-me, muito me custou trepar, na cadeira do corredor, com os pés a balouçar, e aquele sorriso falso que eu ponho quando estou cheia de medo, e só não sacudi muitas vezes o cabelo para trás, como também faço quando estou cheia de medo, porque me tinham mandado pôr uma touca. Veio uma enfermeira entregar-me um questionário, saber das minhas possíveis doenças, operações, se eu tinha próteses, parafusos, pacemakers, piercings, tatuagens. Eu não tinha nada. Ela ficou contente comigo, por eu não ter nada dessas coisas que nos complicariam a vida às duas, e disse-me que a seguir era eu, só tinha de esperar mais um bocadinho.
Fiquei, por isso, sentada frente à sala para onde ela tinha apontado, agora já sabia qual seria a sala de onde me chamariam, a olhar a luz vermelha, até a porta se abrir e sair de lá uma mulher aturdida, cambaleante, também sozinha mas sem sorrisos falsos. Passou por mim, desconfio que sem me ver, meteu-se no quarto onde tinha deixado as roupas dela, e não voltei a vê-la porque um enfermeiro muito moreno, muito peludo, desses a quem saem os pêlos do peito pela gola da bata, veio chamar-me. Tinhas as sobrancelhas unidas pela mesma fiada de pêlo, uma sobrancelha única, como a de alguns bonecos dos Marretas, e não sorria porque a sua função era descobrir doenças nos cérebros alheios e isso tira a vontade de sorrir, ou faz uma pessoa convencer-se que perdeu o direito de fazê-lo.
Explicou-me com voz de autómato que eu tinha de deitar-me na cama, que a cama ia deslizar para dentro da máquina, que eu ficar dentro da máquina, só com os pés de fora, que a máquina ia fazer muito barulho e que quando fizesse muito barulho (que seria quase sempre) eu não podia mexer-me. E ele estaria na sala do lado, a ver tudo, a registar as imagens do meu cérebro engolido pela máquina, e viria ter comigo se eu tivesse um ataque de pânico, se eu rasgasse a bata do hospital, batesse com a cabeça na máquina, se me escorresse o sangue da testa ensanguentada, e dar-me-ia uma dose pesada de tranquilizantes para podermos repetir o procedimento mas comigo mais sossegada.
Fiz o que ele me mandou, fiquei muito quieta na cama, com os auscultadores que ele me pôs, a cama começou a deslizar, como se eu estivesse no tapete da caixa de um supermercado, e fui entrando no monstro branco, um Moby Dick de aço e superfícies polidas, chamem-me Ismael, e a baleia engoliu-me com um ruído seco de engrenagens sofisticadas. Tão quieta e tão manietada (sem algemas, nem sequer de peluche) que fiquei como que reduzida a um par de olhos, a observar o meu corpo a ser sugado para dentro da máquina até ficarem só pernas e pés de fora da baleia. Jonas esteve três dias no ventre do grande peixe (raio de lembrança para quem fugiu à catequese), e só com muitas súplicas e promessas é que conseguiu convencê-Lo a fazer com que o bicho o cuspisse para a praia. O Gepeto e o Pinóquio também, mas isso é outra história.
Habituei-me depressa a esta baleia, tão asséptica e inodora, mas foi então que começaram os ruídos. Chamemos-lhes ruídos, pode ser, mas era mais como um martelo pneumático dentro do cérebro. Tum-tum-tum-tum-tum. Não te mexas, respira devagarinho, faz de conta que isto não está a acontecer, pensa em coisas boas, até sabes umas canções, podes cantar dentro da tua cabeça, há aquela meia dúzia de poemas que sabes de cor, e a outra meia dúzia de momentos perfeitos que tiveste, já muito retocados pela memória para serem mais perfeitos. Pensa em tudo menos nos martelos pneumáticos e no que o peludo da sala do lado esquadrinha no teu cérebro nesta altura. Não somos só o nosso corpo, mas somo-lo tanto.
A minha cabeça aquece, não pode estremecer, como no poema, porque nada em mim pode mover-se a não ser memória e imaginação, virtualidade pura no ventre da baleia. O que foi, o que poderia ter sido, o que será passeiam-se pelo ventre da baleia, movem-se ao ritmo do tum-tum-tum, quem sabe ficarão registados nas imagens que o outro grava, na sala do lado, talvez fiquem imprimidas sobre o córtex, o lobo parietal, o cerebelo, as tatuagens que a enfermeira não queria que eu tivesse. Tenho corpo, mas é como se não o tivesse, pertence à baleia e à câmara que o esquadrinha, e eu estou noutro sítio, dentro da cabeça, muito lá no fundo, onde lembrança e sonho valsam ou se digladiam.
Quanto tempo foi? Meia hora, quarenta minutos. Ou três dias, como Jonas. Mas saí cambaleante e aturdida como a outra, o tum-tum-tum a zumbir na memória dos ouvidos (que a têm), e também nem reparei na cara de quem estava à espera para entrar. Saí como quem foi cuspida para as areias de uma praia, aliviada e agradecida, mas com a boca seca, o coração alterado, e a sensação de que dependemos demasiado da sorte, de um cerebelo perfeito, de que o grande peixe não nos devore ou nos mantenha nas suas entranhas apenas pelo tempo certo. Tudo isto aconteceu, é verdade, naquela vez em que me meteram num aparelho de ressonância magnética para procurar uma doença que eu tinha medo de ter. Afinal não tinha.
Excelente texto! 🙂
De todos los textos que conozco suyos, generalmente muy buenos, sin duda este está entre los mejores.
Excelente texto-metáfora.
É mesmo isso…Metáfora-Realidade.
Também já fiz. Passe o mau bocado, bendita baleia que tão útil é.
E o frio!!!!A pior recordação desse exame que também fiz, num dia de Agosto com quase 40º, é do frio imenso que tinha quando fui ‘cuspida’…Tanto, que quando cheguei à rua fiquei encostada à parede quente do sol, sentada no chão.
Tinha estado seis horas dentro do edifício, em jejum, e quatro dessas seis horas só com a bata vestida.Nunca mais me apanharam a fazer outra…
As leviatãs desta vida…
Parabéns por mais um excelente escrito 🙂
Que paciência para escrever isso tudo… Não serve só para ver se se tem cancro. E o que nos obrigam a assinar? Já não me lembro bem. Qualquer coisa do género: Não lhe vai acontecer nada, mas, para o caso de acontecer, assine isto aqui a dizer que a culpa foi sua. E não há muito tempo soube que numa clínica de Santos (São Paulo, Brasil) morreram, de seguida e num espaço curto de tempo, três pessoas a fazer este exame. Se fosse uma coisa completamente sem qualquer risco não nos obrigavam a assinar tantos papéis.
Eu fiz duas, faltei a uma terceira e prometi a mim mesmo que não fazia mais nenhuma. Não é necessário. Se estiver pior, eu sinto que estou pior. Idem, se estiver melhor. Idem quando voltar a estar bem de novo. Curado. E não sou cobaia de ninguém. Não tenho que provar nada a ninguém. tenho só que me curar.
Ainda bem que o cetáceo a regorgitou !!!
O ” peludo ” é Dr. Médico ou Dr. Enfermeiro ?