O 25 de Abril que não vivi

Foto retirada do blogue folha de poesia

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Era uma miúda naquele histórico, admirável e já demasiado distante dia 25 de Abril de 1974. Para ser mais correcta, nem bem uma miúda era. Era assim a modos que um projecto de pessoa.

Tinha exactamente 4 anos e 27 dias. Memórias desse dia? Zero. Nada. Um vazio total. Infelizmente, não era uma menina-prodígio, não me recordo de absolutamente nada, para grande desgosto meu. Nem uma coisinha.

O único momento da pátria que merecia ser recordado e vivido na primeira pessoa e eu, nada! Há coisas que nos deveriam ficar gravadas na memória, mesmo que as não tivéssemos presenciado, mesmo que fôssemos demasiado pequeninos para as sentirmos, para abarcar toda a sua importância.

Mas, então, por que raios estou eu a escrever isto? Escrevo exactamente porque não vivi, mas gostaria de ter vivido. Escrevo porque há memórias que, não sendo originalmente minhas, me dominaram, tomaram conta de mim e passaram a ser minhas, ou, para ser mais correcta, eu é que passei a ser dessas memórias, de tal forma elas são, ainda hoje, ou talvez hoje mais do que nunca, tão importantes. Escrevo porque quero que as minhas filhas nunca tenham que passar por uma ditadura. Escrevo porque acho vital que nos lembremos do que antecedeu esse dia, de tudo o que conduziu ao que foi esse dia, por muito distante que ele nos pareça, por muito que a democracia nos cheire a podre. Antes o cheiro a podre da democracia do que o cheiro a mortos da ditadura.

Sou filha do povo. Mãe operária, pai vendedor ambulante de artigos de ourivesaria, mais tarde pomposamente apelidado de técnico de vendas. Avós maternos, ele mineiro, sonhava ser artista e trabalhar por conta-própria, ela doméstica, mãe de 10 filhos e pau-para-toda-a-obra (tratava da casa, trabalhava as hortas cujos legumes vendia, criava os porcos e ovelhas cuja carne as suas crianças nunca provaram, cozia broas no forno a lenha,…). Avós paternos, ele trolha, mais tarde ferido numa perna, a mancar, acompanhado da sua bengala, trabalhou sempre enquanto pôde. Quis a sorte que esse meu avô trabalhasse na construção do Hospital de S. João e tivesse tido a sorte de agradar a um dos senhores importantes da obra, que, apiedado do problema do meu avô, lhe arranjou lugar como ascensorista no Hospital. Ainda hoje se fala disso na família e um primo meu até tem comprovativos de que o meu avô paterno foi o funcionário nº 1 do Hospital de S. João. A avó paterna, doméstica também, a cuidar de tudo mailos 6 filhos.
Dos bisavós, só conheci a bisavó materna. Lembro-me dela velhinha, de cabelos brancos presos num puxinho. Lembro-me que eu era pequenina e que a empurrava pelo traseiro quando queria que ela fosse a algum lado comigo. Lembro-me de a ver, pouco tempo antes de morrer, deitada na sua caminha da sua exígua casa da aldeia, já praticamente inconsciente. Lembro-me de falarem do «mal» dela. Era «o mal» que a fazia colocar sempre a mão na barriga, era «o mal» que a fazia agoniar naquela cama. Fez tratamentos mas «o mal» não tinha cura. Do meu bisavô materno, sei que com cerca de 40 anos veio trabalhar para o Porto e, à falta da minha bisavó, que não o quis acompanhar, terá constituído família com outra senhora.
Sim, que pouca vergonha! Naqueles tempos em que Deus era o mais importante, existiam famílias assim constituídas ilegitimamente? É verdade, Deus era tão importante, que os divórcios não eram permitidos, as pessoas tinham que viver amarradas umas às outras para o resto das suas vidas (o que Deus uniu não pode o Homem separar, pois claro!). Separavam-se as pessoas oficiosamente, viviam com outras clandestinamente, tinham filhos bastardos, muitas vezes nem sequer reconhecidos pelo pai, que entretanto partira para novas aventuras, fazendo novos filhos bastardos, legando a todos a herança do «filho de pai incógnito».
Voltando às minhas raízes, a minha bisavó era orfã de pai e mãe, sem ninguém no mundo, sem uma alma caridosa que a acarinhasse ou protegesse. Com 6 anos de idade, sim, seis anos de idade, tinha que cozinhar e aquecer água em panelões ao lume para os Senhores tomarem banho. Não chegava ao fogão. Tinha que subir a um banquinho para poder fazer o seu trabalho. Com seis anos de idade! Quem faz isto a uma criança? Os Senhores da sociedade, claro, aqueles que certamente não faltavam a uma missa nem deixavam que nada faltasse à sua prole. Escola de excelência pré-vinte-e-cinco-de-Abril? A minha bisavó não a conheceu, ocupada que andava a aquecer as águas dos banhos dos Senhores certamente balofos que dela e de outros pobres se alimentavam.
A minha bisavó era tão inocente, com tanta falta de mundo, que, quando casou, pensou que ela e o noivo iam à igreja, iam à festa do casamento e depois voltava cada um para casa dos seus patrões. Assunto arrumado. Nem quero imaginar o terror, o trauma que deve ter sido a sua noite de núpcias. O que aquela rapariguinha tão inocente terá sofrido, sem a mínima preparação, numa época em que os homens eram pouco carinhosos e pouco preocupados com o bem-estar das mulheres.
Da infância dos meus pais, sei a pobreza, a não-fome, mas o desconsolo, a falta de tudo, o sobreviver com menos do que o essencial, sei as socas de madeira como primeiro calçado, sei o apanhar de bosta das vacas para forrar a porta do forno de lenha (donde creio originar a expressão «ir à merda ao monte»), sei a tristeza de não poder estudar, sei o exame de 4ª classe da minha mãe melhor da turma e, ainda assim, ter de ir trabalhar para casa de uns Senhores que a maltratavam, casa de onde ela acabou por fugir, por não aguentar mais os maus-tratos. Sei todos esses relatos que muita gente ainda tem para contar.
De mim, bebé, sei que fui gerada em França, país para onde a minha avó levou a minha mãe de 15 anos para apagar a paixão por um homem 24 anos mais velho, sei as cartas recebidas e enviadas às escondidas, sei o desespero de um amor contrariado, sei a viagem a salto do meu pai para ir ter com a minha mãe, sei os sapatos aos ombros para atravessar rios, sei os momentos felizes em Noisiel, sei o regresso temporário do meu pai a Portugal para tratar de resolver alguns assuntos, sei a descoberta pela minha mãe da sua gravidez e imediata decisão de regressar a este país. Como uma miúda saída de um país onde reina a ditadura vive num país livre e decide, por si só, regressar à ditadura, só pode ser explicado pela loucura do amor. Ninguém no seu perfeito juízo faz isto, apenas uma pessoa apaixonada o consegue fazer. Sei o meu nascimento em casa com ajuda de uma parteira, eu, um bebé, filha de uma menina de 18 anos, que me teve ali sozinha. Uma menina de 18 anos que, por ser mãe solteira não podia trabalhar nas fábricas nem no Hospital, local onde o meu avô paterno lhe arranjava trabalho, não tivesse ela aquele problema de ser já mãe. Uma menina de 18 anos que tratou a sua menina com todos os desvelos, que comprava uma peça de fruta por dia para a sua filha, embora desejasse, também ela, comer alguma fruta.
Sei uma rapariga de 22 anos de idade que assim chegou ao dia 25 de Abril de 1974. Por essa altura, ela já tinha conseguido trabalho na fábrica de têxteis.
Nesse dia, o meu pai veio aflito a casa avisar a minha mãe para não sair de forma nenhuma, havia uma Revolução e podia ser perigoso. A minha mãe nem sabia o que era uma Revolução. Nunca de tal tinha ouvido falar. Nada esclarecida politicamente, vítima de um regime opressivo, sempre se tinha limitado a viver a sua vida sem levantar ondas, nem papéis do chão ou os olhos para os aviões que passavam e atiravam panfletos. A minha mãe fazia parte do rebanho bem domesticado do Estado Novo.
Rio Tinto não era o centro do mundo, nem uma cidade. Rio Tinto era praticamente uma aldeia. Cheia de medo, ao ouvir falar da Revolução, a população fechou-se em casa, ligando os seus rádios para saber novas do país onde viviam e que, no entanto, lhes parecia tão distante, tão outro. Um país tantas vezes sonhado, ou nem por isso. As pessoas viviam acabrunhadas, vergadas ao peso da ditadura e do fatalismo muito veiculado pela Igreja, sempre do lado dos poderosos, sempre contra os oprimidos, sempre olhando apenas para e pelo próprio umbigo, sempre renunciando ao seu Cristo. As pessoas mal sabiam que existiam outros mundos onde a liberdade era uma realidade. As histórias que ouviam de liberdade, de se poder falar e escrever sem recear que os «bufos» denunciassem, de um mundo melhor onde as pessoas podiam comer o que quisessem, onde se podiam ouvir as músicas de que se gostasse, essas histórias soavam a utopia, a sonho nunca concretizado.
O nosso 25 de Abril foi, portanto, passado em casa a aguardar notícias do meu pai, para sabermos se era momento de comemoração ou de maior repressão.
Confirmada a comemoração, as pessoas saíram para as ruas, juntaram-se aos mais afoitos que todo o dia por lá tinham andado, abraçaram-se umas às outras, riram-se, mas sem bem saberem do quê. Sentia-se no ar uma alegria contagiante. As pessoas queriam fazer mais, queriam poder dizer o que pensavam. Ainda a medo, lá começaram a mostrar-se felizes com o que tinha acontecido no país. O que começou por ser um burburinho quase em surdina passou a ser um barulho alto, estridente, as pessoas riam e cantavam e abraçavam-se e dançavam. Os putos corriam e brincavam uns com os outros, pregavam rasteiras sem querer aos pais, que os admoestavam com dois berros e logo a seguir um sorriso de esperança. Um sorriso que revelava dentes estragados mas também uma nova alegria de viver. Sorrisos ainda tímidos que revelavam já novos sonhos para o futuro daqueles filhos tão traquinas.

Esta era a ideia que eu tinha do meu 25 de Abril e provavelmente será a que me ficará para sempre.

Depois de uma conversa com a minha mãe, sei que o nosso 25 de Abril foi outro:

Ela estava a trabalhar, como normalmente, na fábrica de confecções. Lá pelo meio da tarde, reuniram todas as empregadas e mandaram-nas ir directamente para casa. Algo de muito grave e perigoso se passava. Estava a decorrer uma revolução.

Olharam umas para as outras. Qu’era lá isso, uma revolução? Não o sabiam. Só perceberam que era algo de muito grave, que podia mudar o país e trazer a guerra cá para dentro.

Mandadas embora, foram com toda a rapidez fechar-se em casa, ouvir o seu país mudar pela rádio. A minha mãe foi-me buscar à minha ama, a quem eu chamei tia até ao fim dos seus longos dias, e levou-me para casa. Aí ficámos fechadas, de rádio ligado, ela a tentar perceber o que se passava e eu a brincar, alheia a um mundo novo que se abria. Sem perceber que era também a minha vida e o meu futuro que nesse 25 de Abril se mudava.

Seja qual for a versão ou a memória que temos, o futuro tinha finalmente chegado a Portugal. Já se podia sonhar.
Os cravos de Abril desabrochavam enfim.
Em 1975 nasceu o meu irmão.

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