Carta do Canadá – Os rapazes do Paraíso

cafe paraiso

Café Paraíso, encontrado no Boas Notícias

Há poucas semanas a minha velha amiga Gisélia (Constantino de solteira), que há 50 anos geme saudades de Tomar em Angra do Heroísmo, fez o habitual telefonema que me faz reviver os tempos do bibe aos quadradinhos vermelhos e brancos, as botas de atanado e a pasta cheia de ilusões. O pai da Gisélia, muito moreno e cortês, era dono de uma perfumaria pequenina mesmo ao lado do Café Paraíso. Tinham família na Estrada da Serra, onde eu vivia com os meus pais, pessoas que eu conhecia desde Angola. Acho que conheci a Gisélia e o rio Nabão ao mesmo tempo. Depois, crescemos e cada uma foi para seu lado. A Gisélia acabou por me descobrir no Canadá e quando telefona, dá-me sempre novidades: ou está nos Açores o filho do António Campos, o farmacêutico de Santa Cita, ou terminaram as obras do mercado, ou caiu de vez o eucalipto dos Silveiras. Há semanas, dizia eu, comunicou  que o Graça, do Café Paraíso, me mandava um beijo e tinha ficado com pena de não me ver quando fui a Portugal. Fiquei tão contente!  Falámos do outro Graça do Paraíso, o Joaquim. E do Artur.

Mal podíamos imaginar que esta semana nos chegava a notícia da morte do Joaquim. Com que pena escrevo estas linhas.

Nós, os do sul da Europa, somos gente palreira, animada, que gosta de rua, de esplanadas, de cafés. Desde pequenos que, pela mão da família, vamos ao café. Fomos criados nisso. Levamos esse hábito pela vida fora. E há cafés que nos marcam como se fossem uma instituição. No meu tempo de Colégio Nun´Alvares, o Café Paraíso era para gente crescida e para os rapazes que jogavam bilhar. O meu café era, então, a Primorosa, com aquela vista inesquecível do rio e da ponte velha.

Só passei para o Café Paraíso quando, depois da morte dos meus pais, passei a estar em casa da Família Porto, no prédio da Família Madureira, na Corredoura. Nos fins de semana e nas férias, era ali que pousava. E então ia ao Paraíso com o Xico Porto – sempre de boquilha, sempre a reinar, sempre pimpão. O Ti Xico tinha sido forcado e bom murro. Parece que excelente murro porque a dona duma tabacaria perto da minha casa, em Lisboa, onde eu parava à sexta-feira pela tardinha a apanhar a boleia para Tomar, me perguntou um dia se aquele senhor não era o Francisco Porto. Confirmei. E ela: “Ai bem me parecia! A menina diga-lhe que viu aqui a irmã do Menino Jesus”. Farejei paródia e assim que o Ti Xico parou o carro, disparei-lhe que, naquela loja ali, estava a irmã do Menino Jesus. “Não me diga”, berrou o Ti Xico a saltar logo para a rua. Entrou na tabacaria nestes termos: “Então a senhora é irmã do Menino Jesus? E filha do Pai do Céu?  Ainda se lembra duma vez que eu dei uma surra ao seu irmão, na Várzea Grande”?  Que sim, respondia ela toda contente. E foram abraços e mais abraços.

Foi assim que eu me habituei ao Café Paraíso e, com o tempo, me tornei amiga dos dois rapazes Graça. Muitas vezes me foram suporte, sem dizerem uma palavra, naqueles dias sobressaltados de 1975.  Eles e o Padre Anselmo Borges, então a preparar a sua tese de doutoramento e a viver no Convento de Cristo. Hoje, insigne filósofo e professor na Universidade de Coimbra. Uma bica a escaldar, logo na hora, sem eu ter pedido nada, sem uma palavra, mas com um olhar amigo, foi um gesto de ternura que fiquei para sempre a dever a esses rapazes.

Antes de 1974, num dia de cortejo dos Tabuleiros, estava eu à janela à espera quando vejo o Joaquim na rua, mesmo em frente, a gritar por mim, a pedir-me que fosse ao café buscar a Beatriz Costa que estava lá a discutir com pessoas que se riam dela. Fui e fiz a rábula quando cheguei ao pé dela: “Olha quem ela é! Então vens aqui ao meu pedaço sem pedires licença? Anda daí para o fresquinho, ficas ali á janela que te regalas”. E a Beatriz, na teimosia rezingona que dá o Moura Bastos branco, geladinho, que trepa que nem um marinheiro, a mandar vir, a desconversar, que era escritora e tal, não admitia contraditório.  As pessoas riam e o Joaquim afligiu-se, nunca mais me esqueci disso. Lá a levei com jeitinho e depois foi uma risada fresca de todos, pintora Maria de Lourdes Alvellos e seu filho Miguel incluídos, a recordarem velhos tempos de teatradas promovidos pelo seu tio Joaquim Tamagnini Barbosa, no Clube Thomarense. O que eu me diverti ao saber que a Beatriz Costa e o Ti Xico tinham contracenado em cachopos.

Envelhecer traz dois fardos: o reumatismo e ver partir os amigos.  É o meu caso. Adeus Joaquim.