Maria Manuela Santos de Almeida Ferreira dos Santos*
As tão apregoadas eleições livres aproximavam-se. Na Quinta Grande, a Srª D. Cesaltina ensinava os seus trabalhadores. Quase todos tinham a quarta classe, mas o jardineiro já velho, que ali nascera, nunca dali saíra, não sabia ler nem escrever.
Então ela ia-lhe ensinando todos os dias três letras – C D S – as únicas que ele precisava de aprender para votar.
Era um sacrifício para o Sr. Joaquim, por cujas mãos só tinham passado sachos, enxadas e lavoura, tentar pegar no lápis para melhor decorar aquelas letras.
Mas como a patroa lhe dava sempre um copito a mais para o animar, lá treinava.
Depois de muitos dias de esforço, a Srª D. Cesaltina estava vaidosa e contava às suas amigas que conquistara mais um. Até já se sentia uma professora a ensinar meninos, tão fácil lhe parecera a tarefa.
Chegou o dia e o Sr Joaquim, no seu fato domingueiro, lá foi cumprir o seu dever de cidadão. Não sabia bem o que era, mas tinha de fazer uma cruz.
Volta a casa.
A patroa colhia umas flores no jardim para o altar de que era zeladora.
Olha para o Sr Joaquim que, meio acabrunhado, vira e revira o chapéu.
– Então homem. Já votaste?
– Já sim, senhora. Mas cheguei lá e esqueci-me de tudo que a senhora me ensinou.
– E não votaste?
– Votei, votei. Olhei, olhei e vi lá uns desenhos parecidos às minhas ferramentas e vai daí pus lá a cruz.
* Investigadora duriense, compilou centenas de testemunhos das «histórias dos antigos», que em breve serão publicados em livro sob o título “Estórias da História das gentes do Douro”
E agora chamem-no bruto analfabeto…!
A coisa precisa de tempo, mas vai, oh se vai! E investigadores também precisamos de muitos mais, pois só quem investiga, aprende.
A sua estória é merecedora de um vivo aplauso. Porque ela demonstra bem como o ser humano reage às contrariedades.
O Sr. Joaquim, cuja ignorância o deverá ter acompanhado até à hora da morte, apesar dos “ensinamentos oportunos da patroa”, perante a adversidade provocada pela confusão semiótica do boletim de voto, coitado do pobre homem, diante de tanto símbolo, resolveu recorrer à intuição para se desenvincilhar de tal imbróglio, indo buscar às suas memórias, as referências instrumentais daquilo que lhe provocou calos nas mãos.
Note que, com tanto símbolo – como disse e bem (o que foi previamente anunciado e mostrado, quando das primeiras eleições) – a “patroa” não lhe indicava o símbolo, mas as letras…
Mas se a pessoa que lhe transmitiu esse ensinamento optasse por lhe mostrar repetidamente qual o símbolo do CDS, e não as letras, talvez na memória fotográfica do Sr. Joaquim perdurasse por umas horas aquela simbologia.
Uma das razões para os partidos utilizarem simbolos é precisamente essa. E as marcas logotipos.
Quantas vezes não andamos à procura de uma farmácia numa localidade que nos é estranha, e nos orientamos apenas nessa busca, pelo símbolo esverdeado colocado sobre as portas, com a serpente enrolada na taça?
Um texto lindíssimo. Obrigado a si, Sofia, em forma de homenagem à sua mãe.
Muito obrigada .
É uma anedota pouco interessante, que não se tem de pé: bastava dizer como era o simbolo do CDS: uma bola e duas setas. E desenhá-lo, para o “Joaquim” ver, se não estivesse pintado nalgum muro por perto. A que propósito iria ensinar letras a um analfabeto se o boletim de voto tem os símbolos dos partidos – o que foi previamente divulgado…
Caro Sr ,
Antes de fazer qualquer comentário , terá de recuar no tempo e perceber a iliteracia vigente no nosso país , mais Ainda em zonas remotas . Naturalmente não há aqui qualquer tom ofensivo , apenas uma constatação de outros tempos . São memórias do Douro , simplesmente .
Anedota pouco interessante és tu e andas por aí…
Obrigada.
A minha mãe fazia do Douro , Rei .
Era um encanto ouvi-la ..
Bem haja
Sofia de Almeida Santos