Shaolin, meu amor

Entre os meus escassos talentos conta-se o de fingir que falo mandarim na perfeição. É um talento apenas conhecido de um reduzido grupo de eleitos que têm aplaudido as minhas actuações com inexcedível simpatia, chegando mesmo a fingir um entusiasmo que eu reconheço não poder ser genuíno. Evidentemente, não falo uma palavra do autêntico e legítimo mandarim, excepto as que se podem aprender nos restaurantes chineses. Mas finjo que falo e o meu fingimento é credível. Na verdade, é mais uma performance multidisciplinar porque também gesticulo de forma lenta e cerimoniosa e uso uma panóplia de expressões faciais que me parecem muito adequadas.

Fingir que falo mandarim é uma habilidade que está ao meu alcance apenas porque vi, numa idade por assim dizer tenra, um número considerável de episódios de “Os jovens heróis de Shaolin”. Para quem não sabe, nessa série produzida em Hong Kong contavam-se as empolgantes aventuras de Hung Hei Goon, Fong Sai Yuk e Wu Wai Kin, e os seus árduos treinos no templo de Shaolin, na China do século XVIII, para virem a tornar-se mestres de Kung Fu. Estes três haveriam de converter-se em heróis, recordados durante séculos, na luta contra a Dinastia Ching, dos Manchu, que havia derrubado a Dinastia Ming, dos Han. 

Entre outros ensinamentos, devo a esta série o momento em que despertei para a problemática da tradução, que haveria de ocupar razoável espaço na minha vida futura. Os desafios da tradução, o seu permanente risco de imprecisão, comecei a percebê-los quando notei que as longuíssimas frases das personagens da série, pontuadas por gestos teatrais,  apareciam traduzidas nas legendas com uma singela frase.

Um discípulo falava com entusiasmo durante vinte segundos, gesticulava, apontando em múltiplas direcções, sorria, abria muito os olhos, contorcia o rosto, agitava os braços, remexia as pernas, perante o olhar benévolo do mestre, e a legenda resumia-se a um despojado:

– Que belo dia, Mestre.

Ou o mandarim é muito palavroso, pensava eu então, ou algo estava errado. A desconfiança com respeito ao rigor desta tradução foi-se ampliando ao ponto de eu chegar a supor que toda a legendagem desta série partia apenas de um exercício de imaginação de quem, não entendendo nada do mandarim, se limitasse a inventar frases que encaixassem nas imagens.

Mas de tanto ver os episódios acabei capaz de fingir um mandarim espaventoso, tão teatral quanto as actuações dos meus jovens heróis, e de simular golpes de uma arte marcial forjada e até, em tempos há muito idos, de lograr grande perícia no manuseamento do prato chinês, esse divertimento de equilibrista a que dediquei horas de treino e de que ainda hoje guardo a recordação de uma pequena cicatriz na testa.

Ocorreu-me tudo isto, com o atropelo e a fugacidade destas coisas da memória, quando há umas semanas ouvia a minha missa diária, na voz do meu profeta das manhãs, e aí me foi contada a história das alunas do mestrado em Estudos Interculturais Português/Chinês da Universidade do Minho que ganharam o primeiro prémio no Concurso Mundial de Tradução Chinês-Português, em Macau. Uma delas explicava que, quando terminou o ensino secundário, não sabia que curso escolher e foi a mãe que lhe sugeriu esta área de estudos lembrando-lhe a sua antiga afeição pelos desenhos animados asiáticos. E foi quanto bastou, imagino, para lhe acender não apenas um sorriso na cara mas também o caminho que havia de trilhar. Não são raras, afinal, as paixões infantis que podem mudar o rumo de uma vida.

Entre os lugares míticos do meu pessoalíssimo mapa está, afinal, essa Shaolin inventada que as magníficas alunas do Minho me devolveram, nem elas imaginam tal coisa, ao fim de uns quantos anos de olvido.

Comments

  1. henriquemlgil says:

    🙂