Justiça e indignação

A minha indignação com a decisão do processo de instrução do passado dia 9 de Abril foi quase tão forte como a indignação pela falta de protesto generalizado, colectivo e amplamente expressivo da sociedade portuguesa. Não sou jurista nem tenho conhecimento especializado sobre o assunto. Mas tenho, como muitas pessoas, uma clara percepção de que a Justiça em Portugal é injusta e incompetente. É injusta porque deixa portas abertas a que os crimes dos poderosos fiquem sem castigo; é injusta porque também não responde eficientemente aos cidadãos comuns; é injusta porque é morosa; é injusta porque usa uma linguagem mais do que arcaica, absolutamente ridícula e exclusiva; é injusta porque é cara; é injusta porque comete erros de palmatória.

Isto é inaceitável e prevalece, década após década.

A decisão instrutória transmitida a semana passada é aberrante em muitos aspectos e foram já feitas dezenas de análises abalizadas, salientando o inaceitável que foi a desqualificação liminar de provas indirectas – como se a corrupção deixasse, a maioria da vezes, provas directas irrefutáveis – a interpretação benevolente do prazo de prescrição daquilo que constituem atentados contra o povo português, a ilibação do crime de fraude fiscal pela compreensão de que a declaração de dinheiro ilicitamente obtido seria uma auto-incriminação não exigível, o levantamento de arrestos a bens que podem agora estar já a encetar caminho para as Seychelles ou o Luxemburgo.

Pelos vistos, estiveram todos mal, Ministério Público, juiz e a letra da lei. E como tal, isto foi uma bofetada ao povo português; mas foi uma bofetada no meio da tareia que é o prevalecente fraco e inaceitável desempenho da Justiça em Portugal; pergunto se há alguém que diga que a Justiça em Portugal funciona bem; não é essa a minha experiência, nem é isso que ouço das pessoas. E pergunto há quantas décadas isto assim é, pergunto quantas reformas já foram anunciadas, pergunto o que foi realmente consubstanciado, pergunto onde está a vontade política para fazer a reforma necessária e assegurar a sua aplicação.  E já agora, diga-se que nos cursos de Direito também alguma coisa deve ser mudada, a julgar pela arrogância com que os advogados, em geral (claro que haverá honrosas excepções), se colocam perante o cidadão comum que contrata e paga os seus serviços.

Portanto, isto foi um episódio, negro e recambolesco, sim, mas é apenas uma onda neste mar de problemas de que o sistema judicial enferma. E essa é a verdadeira questão. E este era/é o momento de o povo português mostrar que não vai continuar a aceitar a falta de vontade política para mudar, mudar a fundo, o desempenho ineficaz e ineficiente da Justiça perante os cidadãos a quem deve servir. É claro que isso irá demorar e aí sim, há que ter noção de que é preciso tempo para uma reforma sistémica. Porém, o atraso existente é enorme e há que pegar na tarefa de modo decidido e eficaz.

A indignação, à partida, não é apanágio de um determinado quadrante político. É um sentimento que resulta de se considerar uma situação inaceitável. E não só é natural que ela se traduza num protesto colectivo altissonante, como é um dever cívico quando está em causa algo de tão essencial como a Justiça. O trágico é que seja a extrema-direita a conseguir tirar dividendos disto porque as forças democráticas não conseguem arranjar formato para fazer um protesto potente, à altura. Ao contrário do que se divulga por aí, é crucial que nos indignemos e que façamos mais do que colocar cruzes de anos a anos ou escrevinhar individualmente. A indignação expressa colectivamente indica a quem nos governa que vai ter de solucionar este problema e rapidamente.

Portanto há que encontrar vias, formatos, o que lhe queiram chamar, para mostrar essa indignação aos governantes. E é aqui que o falhanço é total. Com a preocupação de manter o sangue frio, a ponderação e a racionalidade, a única coisa que se faz é comentar, dizer coisas muito equilibradas e ajuizadas, analisar o caso de todos os ângulos, exaltar os dons da serenidade, mas sem que isso resulte numa voz com potência e amplitude para ser ouvida. Dessa forma se promovem as pulsões, essas sim, falaciosas, da extrema-direita. E quem pensa que está a actuar contra ela, apenas apelando à moderação, acaba por estar a servi-la.

P.S. E se, ao ler as notícias dos últimos dias, quer parecer que alguma coisa está a acontecer, isso tem tudo a ver com os protestos que, de uma maneira ou de outra, estão a acontecer.

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Comments

  1. António Sequeira says:
  2. POIS! says:

    Curiosamente…

    A representação da justiça escolhida é a grega. Ou seja, a justiça não é cega, tem uma dimensão coativa e, essencialmente, castigadora (espada), ganha o que colocar mais peso nos pratos da balança e é realizada sem regras escritas e na praça pública.

    Parece que…confere!

  3. Luís Lavoura says:

    o levantamento de arrestos a bens

    Eu pelo contrário acho que aquilo que é imoral e inaceitável é arrestar os bens aos cidadãos. As pessoas, mesmo que até possam ter cometido crimes – e em princípio elas devem ser presumidas inocentes – devem sempre ter o direito aos seus bens. É imoral e inaceitável que o Estado ROUBE os cidadãos a pretexto de os acusar de algum crime – que eles podem até nem ter cometido.

    • Filipe Bastos says:

      E cá temos outra lavourada.

      ROUBO é o que fazem estes pulhas, Lavoura. Vai para 50 anos que nos roubam. Em total impunidade.

      Não queira comparar o comum cidadão, amiúde perseguido por uma máquina fiscal nazi por meia dúzia de euros, com esta pandilha de mamões, chulos e trafulhas.

      Ir-lhes ao bolso e aos offshores é mais do que justo: é urgente, necessário, fundamental.

      • Paulo Marques says:

        O dinheiro não cresce nos ricos, nem é pela conta bancária deles que não há para o resto.

      • Filipe Bastos says:

        É também pela conta bancária deles, sim: um zero sum game que todos os direitalhas negam e que muitos esquerdalhas não entendem. Sobretudo os desta ‘nova esquerda’, que de esquerda pouco tem.

        • Paulo Marques says:

          Não é assim que funciona a moeda; basta ver a quantidade de dívida que o bolso direito do BCE e outros bancos centrais devem ao bolso esquerdo. Nem a inflação impede que houvesse dinheiro para mais (não tudo, obviamente), já que o dinheiro dos ricos continuaria parado.
          Funciona assim usando moeda estrangeira, mas nisso mandam os feudais para manter o lucro financeiro. E mesmo isso vai mal rumo á deflação, tal a disfuncionalidade desta coisa.

    • Paulo Marques says:

      Bom, mas a dúvida é mesmo se é deles ou não, ou se o crime deve compensar (e nem é preciso muito para compensar, mesmo com cadeia).
      Já o tempo, bem como da prisão preventiva e outras coisas, é que é muito longo, mas é o que temos.