Adoro o termo esquerda-caviar, essencialmente por dois motivos: porque 1) impede pessoas de esquerda como eu de usar iPhone, o que é perfeito, porque não conto dar um cêntimo que seja à Apple (e porque demonstra taxativamente a natureza autoritária dos proponentes desta chalupice), e 2) porque demonstra o nível de ignorância de quem acha que ser de esquerda implica não possuir bens materiais, algo que me diverte.
Por outro lado, o termo cristão-caviar, aqui proposto pelo genial Duvivier, está mal explorado e é, de longe, uma contradição infinitamente maior que a do gajo de esquerda que tem um iPhone. Religião por religião, o marxismo lá acaba por ser mais honesto. Pobre Jesus, que deve andar às voltas no túmulo à quase 2000 anos, com tanto cristão-caviar a subverter os seus ensinamentos.

Bem me parecia que v. tinha esta confusão, João Mendes. É habitual em centristas / esquerdinhas moderadinhos. Tentarei ajudar.
Primeiro, a hipocrisia cristã só será novidade para si e para o “genial Duvivier”: não há quem não saiba que os fiéis escolhem a parte da religião que lhes convém. Seja caviar ou tremoço, esta hipocrisia, em particular a da riquíssima Igreja, é exposta há séculos.
Segundo, para alguém de esquerda devia ser +- indiferente o que Marx disse. Tenho sempre tempo para ideias; tenho pouco tempo para doutrinas. Interessa-me tanto discutir os termos exactos de Marx como a marca da caneta com que escrevia.
O que interessa é o que é melhor ou pior; certo ou não; justo ou não. O valor e a importância de Marx são inegáveis, mas até ele – segure-se – poderia ser considerado um esquerdista caviar.
Esquerda é acreditar numa sociedade igualitária, colaborativa e solidária. Não a igualdade absoluta, que é impossível e indesejável, mas razoável: ninguém pode ter tanto mais que a média. Ninguém pode gozar luxos enquanto tantos passam dificuldades. A riqueza tem de ser limitada, como tudo o resto que é humano.
Quem é de esquerda pode gostar de luxos; todos gostamos de coisas boas. Mas deve prescindir de excessos. Se isto soa cristão e franciscano, é mero acaso; é uma questão de coerência. Não pode acumular luxos e riqueza sem ser hipócrita. Lamento.
Luxo e riqueza não é um iPhone e comer caviar. Lamento.
Luxo e riqueza não é um iPhone e comer caviar.
A habitual sentença esfíngica. Quem quiser que se esforce por entender; se entender mal não faz mal.
Um iPhone não é um grande luxo; mas é encher um grande mamão e pactuar com exploração e lucros obscenos.
Caviar é um luxo. Claro que se pode comprar no Lidl aqueles frascos a fingir, tipo Ralph Lauren dos ciganos, mas caviar a sério custa centenas ou milhares. Como v. deve saber, pois é também um esquerdinha caviar.
Tenho mais amor ao dinheiro do que à ideia de consumir algum dos dois. Mas continuam a não chegar perto dos verdadeiros luxos.
“Posso compreender que um homem aceite as leis que
protegem a propriedade privada e admita sua acumulação,
desde que nessas circunstâncias ele próprio seja capaz de atingir
alguma forma de existência harmoniosa e intelectual.
Parece-me, porém, quase inacreditável que um homem cuja existência
se perdeu e abrutalhou por força dessas mesmas leis possa
vir a concordar com sua vigência […] devem ser muito tolos”
Oscar Wilde, A alma do homem sob o socialismo
Oscar Wilde (1854 — 1900)
Mais de um século depois, com toda a diferenciação em riqueza e protecção social, ainda há quem se perca e abrutalhe ao ponto de ignorar a experiência vivida do que seja a alma do homem sob o socialismo.
Pois, realmente, terá sido dramático.
Mas, felizmente, as almas adaptam-se a tudo. São muito versáteis e resilientes.
Falam em esquerda e logo invocam Marx, o profeta que anunciou o milagre do fim do capitalismo por combustão interna.
Se o Cristo fundou a responsabilidade individual, o Marx deu a todo o treteiro a desculpa de aguardar que as ‘forças sociais’, ‘as inevitabilidades do processo histórico’ façam o que ele se dispensa de fazer: uma solidariedade activa para com o seu semelhante.
E sabe ainda mais o treteiro: é seu dever promover conflitos e exacerbar lutas, não vá interferir no inelutável processo histórico que o guindará, obviamente, à posição de pastor de uma qualquer rebanho pronto a sustentá-lo.
E sabem qual o receio, mesmo pesadelo, dos que inventaram o rótulo “esquerda-caviar”?
É que ela se transforme na “esquerda qu’os vai aviar”!