Bloco de táxi

Contas feitas, o Parlamento continua a alojar uma maioria expressiva de esquerda, que fica com 129 dos 230 deputados ontem eleitos. Mas as consequências desta eleição, que resultam de um braço de ferro entre o PS e os partidos de esquerda, subordinado ao tema “Quem foi o (ir)responsável pelo chumbo do OE22 que precipitou o país neste abismo, quem foi?”, só sorriram, e de que maneira, a António Costa. Rui Tavares também foi eleito, o que representa uma inegável vitória para o Livre, que lá conseguiu sobreviver ao desastre Joacine, e é digno de nota. Mas uma nota de rodapé, numa história que é sobre um eucalipto que secou tudo à sua volta.

Sobre o PCP já escrevi na noite eleitoral. Foi um dos derrotados da noite, teve um resultado desastroso, perdeu parlamentares de peso como António Filipe e João Oliveira, que prestigiaram a AR com o seu trabalho, e viu aprofundar uma crise que vem de trás, e que não parece ser de fácil resolução. Mas continua com seis deputados, mais dois no Parlamento Europeu, quase duas dezenas de autarquias, presença em praticamente todos os concelhos do país e um forte ascendente no meio sindical.

Já a situação do BE é completamente diferente e muito mais grave. É o grande derrotado da noite à esquerda e só não é o grande derrotado da noite porque houve um partido fundador da democracia que foi obliterado do Parlamento e um Rui Rio que levou a tareia da vida dele. Mas deixarei o grande derrotado da noite e a implosão do CDS para outro escrito.

Agora o Bloco: começou o dia com um grupo parlamentar de 19 deputados, terminou o dia enfiado no táxi do falecido CDS, ribanceira abaixo. Perde 75% do seu grupo parlamentar e fica remetido a três centros urbanos e à sua inexistência autárquica. Meteu-se com o PS e levou. E corre sérios riscos de seguir as pisadas do CDS, caso se não repense a sua estratégia, que, mediaticamente, está demasiadamente colada à comunidade LGBT, à luta antiracista e a outras causas de natureza identitária. E a percepção que existe, alimentada pelos seus opositores por motivos óbvios, é a de que estas são as grandes bandeiras do partido, por oposição às causas de sempre, como a saúde, o trabalho ou a habitação.

Não interessa, para o caso, se isto corresponde ou não à verdade. Interessa, isso sim, a percepção dos eleitores. Muito menos quero com isto dizer que os direitos LGBT ou a luta anti racista não são importantes. São importantes e são fundamentais. Mas não são, no meu entendimento daquilo que é a espinha dorsal do pensamento de esquerda, na sua amplitude de correntes, as causas cimeiras para a vida daqueles que se identificam ideologicamente com os seus princípios e valores. No meu caso não são, seguramente.

Democracia, liberdade, saúde, educação, trabalho, habitação. Um Estado social robusto e abrangente. Direitos laborais e sindicais. Se o BE não recentrar urgentemente o seu discurso, corre o risco real de desaparecer. E eu, que já votei no partido em mais do que uma ocasião, com o qual tenho lutas e causas comuns, gostava que o Bloco fizesse essa reflexão.

Pessoalmente, considero que o BE ocupa um espaço importante na esquerda portuguesa. Uma esquerda liberal, que rompeu com o conservadorismo à esquerda do PS, que esteve a está na linha da frente de inúmeras causas que importam, do estatuto dos cuidadores informais à despenalização da Eutanásia, passando pela emergência climática ou pela luta pela abolição das touradas, muito antes do PAN existir. Eu não quero que o BE desapareça, mas, se nada mudar, duvido que lhe volte a entregar o meu voto. Duvido até que dure muito mais tempo.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    O Bloco de Esquerda é um agrupamento de vários pequenos partidos da UDP ao PSR, passando pela LUAR. Nunca foi uma formação política para ter 19 deputados em circunstâncias normais. Não diria que é um partido de Táxi, talvez mais o de uma Toyota Hiace, daquelas carrinhas de nove lugares, mas não mais. Para o Bloco de Esquerda subir com consistência no número de deputados têm de se assumir como partido de Poder, com implantação autárquica, e não só um mero partido de protesto.
    As circunstâncias criadas pela governação Passos Coelho/Paulo Portas e o legado desastroso de José Sócrates é que fizeram o Bloco chegar tão alto. Uma boa parte do eleitorado respaldou-se no partido de Catarina Martins, mas sem qualquer tipo de militância política.
    O Bloco pode desaparecer, acho difícil, na medida em que o PS se encarregará de o fazer crescer de novo, com a sua habitual promiscuidade com o poder económico e decisões desastradas.

    • POIS! says:

      Perfeitamente de acordo.

      Embora os tempos sejam outros, basta ver os percursos anteriores da UDP e do PSR. São grandes exemplos de resiliência. Mesmo fora do parlamento e quase sem presença autárquica, até estavam em leve crescimento, principalmente de militância (ainda não refletida no parlamento), aquando da fundação do Bloco.

      Na realidade, só ficaram fora do parlamento, nomeadamente o PSR, por causa daquela diminuição de deputados de 250 para 230, uma estratégia do “Centrão” para facilitar as maiorias absolutas e dificultar a vida, nessa altura, ao PCP.

      Resta saber se não vem aí uma nova lei eleitoral cozinhada no mesmo sentido. Acompanhei as tentativas de António Costa, na altura Ministro da Administração Interna, de reformar a lei eleitoral. E a contraproposta do líder do PSD que, na altura era um tal Marcelo. E aquilo não augurava nada de bom. Pelo contrário!

      Aliás, um dos que mais protestou na altura foi o CDS. Estava na mó de baixo.

      • Rui Naldinho says:

        No dia em que o PS for no engodo e aprovar a lei eleitoral que o PSD propõe, vai ficar a partir dessa data, na mesma situação em que o partido trabalhista inglês está hoje.
        Se forem para uma reforma eleitoral como a que existe em França, a duas voltas, em que os dois mais votados, voltam de novo às urnas, para uma segunda ronda, aí, talvez possa haver algum equilíbrio.
        O PS sabe muito bem que reformas constitucionais nesta altura do campeonato, são verdadeiras ciladas para transformar Portugal num país 100% liberal, sem que o Estado tenha instrumentos de regulação e de ação social. Nem Salazar foi tão longe.

        • POIS! says:

          Confesso que não sei muito bem o que o PSD propõe, No programa estava o seguinte:

          “Neste contexto, pretende-se apresentar uma reforma que seja equilibrada e aberta a um compromisso alargado. Reduz o número de deputados de 230 para 215, limita a dimensão dos círculos eleitorais que elegem um máximo de 9 e um mínimo de 3 deputados, introduz um mecanismo de discriminação positiva para
          os círculos com menos eleitores e garante a mesma proporcionalidade e a representação dos pequenos
          partidos”.

          Como é que este milagre é feito, não sei. Mas há indícios de mau começo. O método de Hondt, bem como qualquer outro proporcional, começa a “patinar” em termos dessa mesma proporcionalidade logo abaixo dos seis mandatos. Outro problema é o número ímpar de mandatos a atribuir.

          Veja-se o que aconteceu em Bragança nestas eleições: supostamente (ainda está a decorrer o apuramento geral) o PS ganhou por 15 votos. E ficou com dois deputados e o PSD só com um…

          A lei eleitoral há tempos proposta por um conjunto de personalidades da nossa praça (Ribeiro e Castro era um dos nomes mais conhecidos) tinha o cuidado de impedir os círculos com número ímpar de mandatos. De todos os projetos que vi até agora, era um dos mais aceitáveis. Pelo menos, uma boa base.

          Outro pormenor importante: a dimensão do tal círculo nacional e o seu funcionamento.

          Acho que o PS nunca embarcaria no sistema a duas voltas igual ao de França. Acabaria na mesma com a representação dos partidos mais pequenos.

          Sobre o sistema francês permita-me uma correção: não são apenas os dois mais votados que passam à segunda volta. São todos os que obtiverem 12,5% dos votos. O sistema foi feito para acordos de desistências recíprocas, à direita e à esquerda, que deixaram de funcionar nos últimos tempos, provocando frequentemente segundas voltas com três candidatos.

          Não sei se o PS continua agarrado às antigas propostas do Costa. Era um sistema que diziam parecido com o alemão mas, na realidade digo-lhe eu, muito diferente.

          Demasiado propiciador de voto útil, dificilmente compatível com as leis da paridade. Além de outros problemas de distorção que seriam agravados com uma possível redução de deputados.

          E com uma diferença abismal em relação ao alemão: o número de deputados, na Alemanha, não é fixo. Aliás, tem aumentado à medida que existem mais forças políticas representadas no Bundestag. São já 736, sendo os lugares “normais” 598. Os outros são mandatos supranumerários, para se manter a proporcionalidade. Quererão fazer o mesmo aqui?

          • Rui Naldinho says:

            Boa análise. Já percebi que está mais bem informado do que eu. Obrigado

          • POIS! says:

            Não tanto como já estive. Mas suspeito que, em breve, teremos novidades e voltaremos a trocar umas impressões sobre o assunto.

            Estou, no entanto, bastante pessimista. Vamos ver se não será necessário lançar um movimento contra uma possível “ignóbil porcaria” à moda do século XXI engendrada pelo “centrão” e muito bem embrulhadinha em “aproximação dos eleitores aos eleitos”.

  2. balio says:

    Rui Rio levou a tareia da vida dele

    O PSD somente perdeu seis deputados. Não é muito.


  3. Um táxi só leva 4 passageiros. O que não invalida o raciocínio…

  4. Fernando Manuel Rodrigues says:

    O troll Mendes teve uma epifania… LOL

    “a sua estratégia, mediaticamente, está demasiadamente colada à comunidade LGBT, à luta antiracista e a outras causas de natureza identitária. E a percepção que existe, …/… é a de que estas são as grandes bandeiras do partido, por oposição às causas de sempre, como a saúde, o trabalho ou a habitação.”

    POIS… Existe essa percepção porque é a realidade. E o povo mostrou que não são essas as preocupações que devem nortear um partido político, quando o país caminha para a cauda da Europa e foi ultrapassado, nos últimos anos, por quase todos os países do ex Bloco de Leste, que estavam muito mais atrasados há apenas 20 anos. Talvez porque se preocupam com o que realmente interessa.

    Não se esqueça de ensinar isso na disciplina da Cidadania, em vez da Ideologia de Género.

    • Paulo Marques says:

      Que não são relevantes as lutas LGBTI+, anti-racismo e anti-xenofobia porque, tal como o acesso a saúde, direitos laborais, combate à especulação imobiliária, lavagem de capital e corrupção, preocupações com taxas de pobreza e suicídio são entraves à acumulação de capital que faz O Indicador ™ subir?
      Pois, se calhar devia.

  5. Paulo Marques says:

    É culpa própria, e um tiro no pé completamente desnecessário. Até porque os partidos à sua volta vão defendendo o mesmo, a ritmo diferente é certo. Acelerar o crescimento das mentalidades é objectivo que dificilmente ainda pode ser concretizado sem a interseccionalidade com as causas de quem trabalha, o que devia ser bem entendido num partido que se diz marxista. Ainda por cima quando o trabalho está lá, dos locais de trabalho ao parlamento, mas a comunicação é isto.