Terapia de Casal para um Escritor e o seu Livro

 

O sentimento é, talvez, comum a todos os artistas ou todos os criadores que se aventuram no processo de dar origem a algo. Seja esse algo um livro, um quadro, uma escultura, uma música, um filme. E esse sentimento é uma relação agridoce com a primeira criação, ou com as primeiras criações (para carreiras mais longas). Talvez nem todas as pessoas o sintam. Mas eu senti. Tive, durante muito tempo, uma relação complicada com o primeiro livro que publiquei. Eis as razões para isso.

O livro é um marcador de tempo de alguém que já fomos

Os anos vão passando e a pessoa que éramos quando escrevemos o nosso primeiro livro vai evoluindo. O livro é um marcador de tempo para alguém que fomos e já não somos. E essa ideia ganha mais peso quanto mais tempo passa.

É natural que olhemos para o nosso passado com algum desgosto, por vezes, ou com uma sensação de não reconhecimento com várias atitudes que tivemos ao longo da vida. Isto acontece porque evoluímos, porque caminhamos para lá dessas situações. E quando recordamos algo que é apenas uma memória, conseguimos apaziguar os sentimentos.

No entanto, um livro que escrevemos data a nossa vida naquele período. Mesmo que não seja biográfico conseguimos rever-nos neles. Conseguimos ver o que nos influenciava, conseguimos olhar para “dentro da máquina” e perceber o funcionamento do sistema que nos levou àquela história. E mesmo que recebamos opiniões muito positivas – como felizmente ainda vou recebendo, tantos anos depois – a verdade é que nós temos um olho crítico diferente, porque nos conhecemos como ninguém.

E esse conhecimento provoca, muitas vezes, uma relação tumultuosa com algo que saiu directamente da nossa alma.

A Síndrome do Impostor bate à porta

Outra das razões pelas quais as nossas primeiras obras podem provocar-nos sensações duvidosas é a Síndrome do Impostor, ou o fenómeno através do qual achamos que não somos tão capacitados como as outras pessoas parecem achar que somos.

Entramos num ciclo vicioso de sentimentos de fraude, de imerecimento do reconhecimento que os outros nos dão. Mesmo recebendo elogios, prémios, tempo de antena, vivemos com a ansiedade permanente de que, de repente, o cenário vai cair e o mundo vai descobrir que não merecemos nada do que fomos tendo.

Olhando para a publicação de um livro tão cedo, e percebendo que cometi imensos erros no processo, também sofri com o síndrome do impostor, com o medo de que, de repente, tudo não passasse de uma ilusão.

E tendo o livro na mão como lembrete desses sentimentos fazia com que não pudesse ter uma relação saudável com ele.

O livro que me impedia de escrever

O tempo foi passando e a sequela ia tardando, e tardando, e tardando. E isto acontecia porque, fruto da complicada ligação ao primeiro, a minha escrita ficava bloqueada.

Na minha mente acontecia algo deste género: então se eu escrevi um livro e não me sinto bem com ele, porque haveria de voltar a escrever?

Além disso, a minha forma de pensar, de analisar o mundo e, por consequência, de escrever, avançou e mudou tanto em relação àquele espaço temporal, que sentia que estava a escrever a sequela do livro… de outra pessoa.

E, ainda por cima, tendo sido apenas o primeiro, sentia-o sempre sobre a minha cabeça. Como se eu não fosse um escritor, mas o autor daquele livro e só.

Criava-se uma bola de neve, uma verdadeira espiral de sentimentos bloqueadores que emperravam a minha escrita. Pensamentos e sentimentos vindos dessa relação tumultuosa com a primeira obra.

A solução? Ler o livro

Certo dia cheguei à conclusão que, desde o seu lançamento, nunca tinha lido o livro do início ao fim. Li partes, que me ajudavam a rabiscar tentativas de sequelas, mas nunca o tinha lido como aquilo que ele era: um livro. E foi então que decidi fazê-lo e senti essa relação negativa a esvair-se.

Hoje olho para ele com o orgulho de quem concretizou um sonho e escreverei sobre esse processo de fazer as pazes mais tarde. Por agora, dizer que me parece que esta relação difícil com a primeira ou as primeiras obras é natural. E que não devemos prender-nos demasiado a ela. Devemos aceitá-la, perceber de onde vem e, com essa calma e presença, resolvê-la.