O Equilíbrio do Terror #1 – Realpolitik, from Kiev, with (no) love

Quando o Kosovo declarou independência da Sérvia, a decisão foi entusiasticamente reconhecida e apoiada pela Administração Bush. A Federação Russa, por seu lado, já com Putin ao leme, condenou e opôs-se àquilo que considerou uma agressão à soberania da Sérvia. Foi em 2008. Ontem, portanto.

De lá para cá, passaram-se 13 anos. E ontem, sem grande surpresa, os papéis inverteram-se. Putin, qual Bush, decidiu reconhecer a independência dos oblasts de Lugansk e Donetsk como repúblicas independentes. Biden, qual Putin, não demorou a condenar a violação da soberania ucraniana.

Reduzir o que se passa no leste da Ucrânia a “bons” contra “maus” é um completo absurdo. O que se passa na fronteira russo-ucraniana é realpolitik a acontecer. É um embate entre duas potencias que pretendem exactamente o mesmo: reforçar a sua posição e o seu poder. Estão-se nas tintas para os ucranianos, estão-se nas tintas para os separatistas do Donbass, estão-se nas tintas para a segurança da UE. Todos eles são meios para fins que se estão igualmente nas tintas para os actores secundários. Em realpolitik, não existe espaço para considerações éticas ou morais. Hard power, bruto e sem sentimentos, como Nye o descreveu.

É importante que isto fique muito claro, porque a ciência política, não sendo uma ciência que se pode dar ao luxo de isolar experiências em laboratório, obtendo resultados matematicamente precisos, também tem as suas verdades absolutas. Uma delas é esta: aos actores políticos que hoje se confrontam, na Ucrânia, não interessa o altruísmo ou a defesa dos direitos humanos. Existe, apenas e só, o interesse nacional de ambas as potências, na óptica de quem as governa. E isto vale para ambos os lados. Se a democracia e os direitos humanos fossem um valor absoluto, Europa não estava colonizada por capital chinês e as selfies nas monarquias absolutas do Médio Oriente perderiam todo o seu encanto.

Putin pretende alargar a consolidar o alargamento da sua esfera de influência, e, pelo caminho, enfraquecer a UE. Acabar com ela, se possível. Não porque é “mau” (Putin é uma besta, mas não é isso que está aqui em causa), mas porque essa é a forma de aumentar o seu poder e influência, no limite a sua sobrevivência e a sobrevivência do regime que personaliza. Não é à toa que financia a extrema-direita eurocéptica europeia, o que torna ainda mais anedótico, ou trágico, não sei bem, ver pessoas e partidos de esquerda a defendê-lo contra o imperialismo americano, como se Putin fosse o Robin dos Bosques, com foice e martelo no lugar do arco e das flechas. E o reconhecimento da independência das zonas controladas pelos separatistas, que já apoiava há vários anos, será o seu visto gold para correr a auxiliar militarmente os seus novos aliados, com quem imediatamente firmou pactos de “amizade”, o que demonstra que tudo foi planeado com alguma antecipação. Aliás, o próprio Putin já admitiu entrar no território para levar a cabo uma missão de peacekeeping. A ironia é bela, e mais bela se torna quando nos ocorre que o ditador russo é especialista em venenos, não só para assassinar opositores em solo britânico, mas também para nos dar a provar do nosso. Karma, essa implacável bitch. Quase tão implacável como o rei-oligarca.

Já Biden e os seus falcões querem expandir a NATO, da qual são donos e senhores, e reforçar o seu poder militar, reforçando também o poder e os lucros da indústria do armamento, sempre tão generosa em tempos de campanha eleitoral. A mesma NATO que, no aftermath da dissolução da URSS, garantiu que não havia de se expandir para lá da Alemanha. Tão certo como a garantia que nos deu, há 19 anos, sobre existência de armas de destruição maciça no Iraque. No fundo, a Ucrânia será o Iraque de Putin: uma invasão, dissimulada por falsos pretextos morais que não interessam minimamente a Putin, que lhe permitirá tomar conta de uma parte ou mesmo de todo o país, dependendo da forma como as peças se vão movimentar no tabuleiro. Mas não sejamos ingénuos: os EUA fizeram o que puderam para que o desfecho fosse este. E a invasão da Ucrânia será o pretexto perfeito para obter o que verdadeiramente pretendem: intervir militarmente, gerar negócios trilionários para os gigantes do armamento, quase todos americanos, anexar a Ucrânia através da NATO, humilhar Putin, aumentar a sua esfera de influência e colocar pressão adicional na China, o seu verdadeiro e único adversário, que tem na Federação Russa um mar de terra, hostil ao Ocidente, que funciona, ela própria, como uma zona tampão para Pequim.

Lamento se desiludo os líricos, que cuidam estar a assistir a uma batalha do bem contra o mal, mas não é nada disso que se está a passar. O que se passa é um choque de interesses entre duas potências, que se estão literalmente nas tintas para a Ucrânia. It’s just another proxy war.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    “Ver partidos de esquerda a defendê-lo contra o imperialismo americano, como se Putin fosse o Robin dos Bosques, com foice e martelo no lugar do arco e das flechas.”

    Diga um!

    • Sensei says:

      O mesmo se passa à direita não ? A idiotice dos pseudo políticos ocidentais só é igualada pela idiotice dos pseudo políticos a leste. Mas Portugal vence por vasta margem, na idiotice profunda e assumida, com uma orgulhosa mente sofredora de uma neoplasia em profundo estado destrutivo da sua credibilidade.

      • Paulo Marques says:

        O mesmo quê? A clareza é importante. Se nos partidos responsáveis pelo estado de coisas a narrativa é clara e sem margem para dúvidas, no resto nem por isso. E dizer problemas dos dois lados, como sinal que o povo não interessa, não é defender um lado, por muito que seja útil dizer que sim.

  2. Melga says:

    Preparem-se para a subida do preço do gás.

  3. João Peneda says:

    Preparem-se para a subida de todos os preços

  4. JgMenos says:

    «Putin é uma besta, mas não é isso que está aqui em causa»

    Também o Hitler começou pelo oblast dos Sudetas e chamaram-lhe realpolitik e também se falou em espaço ‘vital (agora área de inflência); a seguir foi a Polónia e o mais que se seguiu.

    Quem se serve da realpolitik para ignorar valores – houve sérvios no TPI por algum motivo – arma-se em chico-esperto para não dizer que não os tem.
    As ´novas repúblicas’ são sequelas coloniais num caso com especificidades relevantes, mas postas ao serviço de um regime imperial´, anacrónico, corrupto e execrável.

    • Paulo Marques says:

      O teu querido líder, que diz sobre o financiador? Nada, novamente?

    • POIS! says:

      Pois foi!

      Mas o que valeu é que o Oliveira da Cerejeira, no meio de duas podas lá em Santa Comba, topou logo a jogada toda! E engendrou um plano secreto, tão secreto, tão secreto que ficou secreto.

      Começou por mandar vir um retrato do Mussolini, que pendurou lá no gabinete para disfarçar e pôr aquela gente toda a pensar que estava daquele lado. Pura mentira!

      O que muita gente não soube é que, secretamente, no laboratório da PIDE começava a produzir-se uma substância que, adicionada ao volfrâmio que a malta lhes vendia, o tornava, passado algum tempo, mais mole que manteiga fora do frigorífico.

      Esse elemento chama-se Premangantónio Oliveiroxido Salazarácido e só por boicote político da esquerdaria não aparece na Tabela Periódica.

      Foi isto que mudou a sorte da guerra, lá para os lados de Leninegrado. Mesmo a 20 graus negativos, as armas derretiam, enquanto os soldados ficavam tesos que nem carapaus!

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