O último Mundial do Ronaldo… e de 6500 trabalhadores!

Amanhã, parece que começa o Mundial de Portugal. Muitos já o chamam de Mundial da vergonha, mas não é o suficiente para deixarmos de seguir com a mesma intensidade os heróis nacionais que se irão sacrificar pela nossa pátria. Os direitos humanos são inalienáveis, menos quando se trata de bola, porque o desporto irá unir toda a gente. O Qatar, neste momento, é aquele homem que bate na mulher e depois pensa que resolve tudo com umas flores. Neste caso, as flores são o futebol.

 

Entendo que para o Ocidente este Mundial seja uma vergonha e tal, mas agora esqueçamos isso. Quem não deve esquecer são as famílias dos trabalhadores que faleceram em condições terríveis, aqueles que não podem assumir a sua identidade no Qatar, aqueles que vêem as suas liberdades individuais aniquiladas. No entanto, o Ocidente perde cada vez mais a moral para criticar estes regimes totalitários. A cada oportunidade de ver dinheiro à frente, o Ocidente coloca as tretas dos direitos humanos de parte e verga-se perante os cifrões que lhes são colocados no papel. Perdemos constantemente os valores a troco de preços. A culpa disto já não é do regime assassino do Qatar, é de quem se aceita corromper por tão pouco.

 

Mas esqueçamos isso. Esqueçamos isso, porque sabemos que, em princípio, nunca será um dos nossos ou próximo a sofrer o que esses migrantes sofreram. Esqueçamos isso, porque vivemos neste canto à beira-mar plantado que até é bem sossegado. Esqueçamos isso, porque sim, trabalhadores a falecer é chato, mas agora a preocupação é se o Danilo joga a central. Esqueçamos isso, porque ter um estádio em cima de um cemitério pode não ser agradável, mas já imaginaram se o Félix marca um golo mesmo ao ângulo naquela baliza? Esqueçamos isso, porque é o último Mundial do Ronaldo… O pior é que também foi o último de 6500 trabalhadores.

Nunca nos esqueçamos.

A UTAO é financeiramente iliterada

Numa proposta de alteração ao Orçamento de Estado para 2023, a Iniciativa Liberal (IL) sugeriu a criação de apenas dois escalões, em vez dos seis existentes em 2020 (agora são nove, em 2023).

Mas, diz a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) que “a variação da receita de IRS no Continente em 2020, caso a proposta da IL substituísse a redação do art. 68.º do CIRS em vigor nesse ano, atingiria o montante aproximado de –2,9 mil M€, cerca de 22,8%”. Foi a própria IL que pediu este parecer, por via da Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças.

O parecer esclarece que, caso a proposta da IL estivesse em vigor já em 2020, as finanças públicas sofreriam um rombo de 3.000 milhões de euros. Milhares de milhões que já não são totalmente aplicados na Saúde, na Educação ou na Habitação e que, caso a IL conseguisse pôr na Lei a sua proposta, ficariam ainda mais calvos de meios e profissionais.

A vida adulta, confirma-se, é bastante diferente da adolescência arrebatada que levou a IL a eleger um deputado em 2019 e oito em 2022. Como se viu no Reino Unido, os choques fiscais trazem mais problemas (nomeadamente aos pobres e à proclamada classe “média”) do que benefícios à maioria dos cidadãos (como se aferiu pela situação britânica, há uma minoria que, certamente, lucraria com isso – por isso parem lá de dizer que a Direita não respeita minorias).

Por fim, noutra notícia, datada de 9 de Novembro de 2022, mas que se relaciona: “IRS reduziu desigualdades em 12% em 2020”. Segundo noticia o Jornal de Negócios, uma “análise inédita com base em microdados da Autoridade Tributária mostra que o IRS é um instrumento poderoso de redução das desigualdades de rendimento. Mas mostra também que os rendimentos mais altos estão concentrados numa fatia pequena da população.” Comprova-se, portanto, que a realidade liberal não é a realidade factual e que os ataques dos ultra-liberais à progressividade fiscal não são mais do que um ataque a um dos melhores instrumentos de redução das desigualdades entre a população.

O que importa, pois, não é, então, eliminar a progressividade e adoptar apenas dois escalões, beneficiando quem arrecada mais ao final do ano, mas sim tornar essa progressividade mais justa entre escalões e mais abrangente.

O ainda líder dos liberais diz afastar-se da liderança para “tornar a IL mais popular”.

Ser popular… ou ser populista, Cotrim de Figueiredo?

Ps. Como não poderia deixar de ser, as principais figuras da IL já se predispuseram a acusar a UTAO de ignorância por essas redes sociais fora. O “complexo de deus” tem destas coisas.

“Cerca de 40 detidos por escravizarem centenas de imigrantes em campos agrícolas”

Não fazia ideia de que no Catar havia um lugar chamado Beja.

Aberração em Alvalade

Pouco se falou ou debateu o caso mas, à beira desta aberração, o “esqueçamos isso” de Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu ser menos embaraçoso para a democracia portuguesa.

Não é admissível que um cidadão português seja proibido de entrar no estádio de t-shirt da Amnistia Internacional vestida com uma mensagem sobre violação dos direitos humanos na construção dos estádios do Mundial do Qatar. Alvalade não é nem pode ser o Lusail.

Pessoalmente, penso que a Amnistia Internacional devia processar o estado português, por permitir esta ingerência inaceitável da FIFA na soberania de Portugal. A Constituição da República Portuguesa protege aquelas pessoas que foram impedidas de entrar no estádio e não está submetida a uma organização corrupta como a FIFA.

Mas foi precisamente a FIFA, voz do seu dono qatari, o Vladimir al Thani, quem levou a melhor.

E eu senti, naquele momento, vergonha de ser português. Vergonha de ver Portugal vergado a um regime totalitário que exigiu o silenciamento e castração de uma liberdade individual fundamental, constitucionalmente protegida. E vieram-me a cabeça as palavras do pastor Martin Niemöller:

  • Quando os nazis vieram buscar os comunistas eu fiquei em silêncio, porque não era comunista.

Que não chegue o dia em que eles venham buscar os tipos com t-shirts da Amnistia Internacional. Os próximos, em princípio, serão vocês.

Até das vitórias temos medo?

Os cerca de 700 estivadores de Liverpool conseguiram uma importante vitória. Depois de uma greve de cinco semanas conseguiram aumentos entre os 14.3% e os 18.5%. Entretanto, por cá, ninguém deu a notícia, estejamos a falar da comunicação social, estejamos a falar da comunicação das demais organizações. Estes conflitos são fundamentais para lembrar que a única maneira de enfrentar a crise económica, política, social e sindical, é a recuperação das formas de luta, mas se as formas de luta não forem notícia, sobretudo quando são vitoriosas, perde-se o efeito pedagógico da sua aprendizagem. O silêncio dos meios de comunicação das grandes corporações é óbvio – estão a trabalhar para os seus interesses – mas dos demais não. Estamos num tempo tão defensivo que até das vitórias temos medo?