Deixaste-nos, Laura

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Ana Barros

Relembro, agora, a primeira vez que nos encontrámos. já lá vão longínquos 30 anos.
as duas “velhotas” numa turma de garot@s, uma a aprender, outra a re_aprender, alemão.
tu a aprendê-lo porque, na altura, querias ler Nietzsche no original para as tuas provas na universidade; eras assistente estagiária. eu, porque, à falta do que fazer, queria ocupar algum do meu tempo a relembrar uma língua que sempre me cativou.
foi instantânea a empatia que se criou entre nós. assim foi durante este tempo todo. e eu sempre a admirar a mulher brilhante que eras.
fui às estantes procurar os teus livros. no meio do caos, encontrei o “Variações sobre o entre-dois” e o “Alteridades feridas”, os marcantes dois volumes do teu “Diário de uma mulher católica a caminho da descrença” e o “Ajudas-me a morrer?“. neste último, releio a tua dedicatória: “Para a Ana Paula, a amiga de todas as ocasiões”. tenho consciência que o não fui. poderia ter sido muito mais presente e nunca te pedi desculpa por isso.
sentia já a tua falta durante estes anos em que tanto sofreste; neste momento, sinto que foi a libertação que te chegou na forma que nos (os outros) dói mais.
descansa, agora, em paz e em liberdade total, minha amiga.

A morte assistida e a carta de Lincoln

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Laura Santos

Quando não aguentar mais, vão dizer-me que não reflecti o suficiente?

O último filme de Tarantino, Os oito odiados, situado uns anos após a Guerra Civil americana, começa com uma cena em que, numa tempestade de neve assustadora, um caçador de recompensas negro, Major Marquis Warren (Samuel Jackson) [foto], pede “boleia” a uma diligência, de modo a poder levar no tejadilho os cadáveres de três criminosos à cidade de Red Rock. Dentro da diligência está outro conhecido caçador de recompensas, O. B. (James Parks), algemado a uma mulher que vai levar para a forca na mesma cidade
O.B. identifica o Major como sendo aquele negro envolvido na Guerra a quem o próprio Lincoln teria escrito uma carta de amizade. Devido a esta fama, dá-lhe de facto boleia, pergunta-lhe se leva consigo a carta e lê-a em silêncio. [Read more…]

Francisco e a funcionária que recusava casamentos gay

Os fundamentalistas atribuem-se a si próprios uma liberdade de juízo e de acção que negam aos outros.
Antes do mais, um pouco da história, para quem a desconhece, embora não tenha encontrado uma versão que me fornecesse todos os dados a que gostaria de ter acedido.
Kim Davis, funcionária-chefe de uma repartição de registos numa cidade do Kentucky, opositora do casamento entre pessoas do mesmo sexo, direito reconhecido em Junho passado pelo Supremo Tribunal dos EUA, recusava-se a cumprir a Lei (os pormenores variam consoante a fonte), invocando motivos religiosos (Kim pertence à Igreja Episcopal, mas antes da “conversão” divorciara-se três vezes). Defendia para si o direito à objecção de consciência, mas os Tribunais não lhe deram razão. O Supremo terá alegadamente dito que um funcionário não pode “declinar agir em conformidade com a Constituição dos Estados Unidos”.

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O Alexandre, a Mariana e António Nóvoa

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© Alfredo Cunha 2015

Laura Santos

“Não deixemos que a esperança também emigre”.

Apesar da falta de forças e dos azares da vida, quis estar presente na apresentação da Carta de Princípios de António Nóvoa (AN) no Teatro Rivoli do Porto. Nóvoa e o meu falecido Irmão Ademar tinham estreitado amizade nesse pós-25 de Abril “inteiro e limpo”. Eu acabara por ter o meu pequeno espaço dentro dessa amizade. Ademar falecera num 22 de Maio, a apresentação era a 25. Como não estar presente?
Primeiro problema: onde deixar o carro, vindos de Braga, pois eu e o marido decidíramos ir cedo para arranjar lugar no Teatro? Estacionámos, mas havia um problema com o parcómetro. Um arrumador perguntou delicadamente se podia ajudar. Pelo modo como se expressava, vi que não era como os arrumadores habituais. Disse-lho. Ele confirmou que outros já lhe tinham dito o mesmo. Perguntei o que lhe acontecera. De modo humilde e tentando esconder a tristeza, lá foi dando alguns pormenores. Tinha razoáveis habilitações académicas – indicou algumas -, mas há dois anos que não conseguia emprego. Já não tinha carro nem net, e o estado dos dentes da frente, para cuja recuperação não tinha dinheiro, também tinham sido um obstáculo à obtenção de emprego. Perdera a vergonha e tornara-se arrumador. Uma professora amiga dissera-lhe que vergonha era ficar de braços caídos. Ele sabia que era diferente dos outros arrumadores, mas sabia também que não era isso que lhe ia arranjar emprego. Percebi-o bem: a interminável construção civil à volta da nossa casa, dantes tão sossegada, e a falta de alternativas logísticas, mesmo para descanso de verão, agravaram a minha situação oncológica. Mas em que é que essa explicação me retira as dores e o perigo de vida? Seguimos as sugestões deste arrumador – só fixei um dos seus nomes, Alexandre – e sei que nunca mais o esquecerei. [Read more…]

O lapso de Cavaco Silva

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Laura Santos

Nós devemos dar graças a Deus por termos a rede de instituições de solidariedade social que temos em Portugal“.

No dia 29 de Abril deste ano, Cavaco Silva agraciou várias instituições e individualidades ligadas ao exercício da Solidariedade Social. Na curta intervenção efectuada na altura, ressaltou que, nos últimos anos, tinham conseguido “atenuar o sofrimento de milhares de portugueses que foram atingidos pela crise económica e financeira”.
Até aqui, nada a objectar. O problema, a meu ver, surge quando Cavaco Silva afirma que “Nós devemos dar graças a Deus por termos a rede de instituições de solidariedade social que temos em Portugal”, frase a que alguns canais televisivos deram destaque.
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Testamento Vital: o que está a acontecer?

Laura Ferreira dos Santos* e João Carlos Macedo**

 

livro_testamento_vital_laura_ferreira_dos_santosEmbora, por Lei, não seja obrigatório usar o modelo disponível no Portal da Saúde para efectuar um Testamento Vital (TV), vamos aqui centrar-nos nele, atendendo a que foi o meio escolhido por um de nós.

Na medida em que muitas das opções referidas no modelo não iam ao encontro do que se queria, fez-se sobretudo uso dos espaços em branco.
Des
de já, ressaltem-se seis elementos:
1. o modelo não pode ser preenchido em computador, mas apenas à mão;
2. os espaços em branco do modelo realmente existente são muitíssimo mais pequenos do que aqueles que o modelo publicado em
DR dava a entender visualmente (portanto, o utente fica muito mais cerceado na sua liberdade);
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A pausa no meio da tristeza

Laura Ferreira dos Santos

“Já praticou a eutanásia? Já matou pessoas?”. Foi assim, sem mais, que a jornalista inglesa interrogou um médico belga que há pouco perdera a mãe de 82 anos através de um processo de eutanásia. A mãe já observara a evolução do Alzheimer em familiares próximos e não queria acabar do mesmo modo. Por isso, informou o filho médico e as filhas de que pretendia antecipar a sua morte, enquanto ainda lhe era reconhecida capacidade intelectual suficiente para o fazer.
Esta pergunta e esta pequena história está contida num programa que a Radio 4 da BBC emitiu em 9 de Janeiro deste ano sobre a eutanásia na Bélgica, em que se focava sobretudo a questão da possibilidade de estender essa realidade aos menores terminais em grande sofrimento físico que mostrassem discernimento suficiente para a entender e acabassem por dar indicações indesmentíveis de que era isso que pretendiam. [Read more…]

A Bélgica aprova a eutanásia para menores

Laura Santos

Regra geral, os menores com doenças graves adquirem uma maturidade elevada.

1. Ao contrário da lei holandesa sobre a “terminação da vida a pedido”, que prevê a possibilidade dessa prática a partir dos 12 anos, a lei belga (2002) exclui os menores não emancipados. Mas assim como os holandeses não sabem como lidar com os menores abaixo de 12 anos, também os belgas se interrogaram sobre o que fazer com os menores.
Finalmente, o senador do partido socialista Ph. Mahoux, antigo médico – co-autor da lei de 2002 -, tomou a iniciativa de, com outros, elaborar um projecto de lei que visa estender aos menores a lei existente, com as adaptações necessárias. Depois de muitos debates, a proposta foi aprovada no dia 13 de Fevereiro.
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Os médicos que matam a esperança

Laura Santos

filme-hijackingCom Capitão Phillips, pensava que iria ter apenas uma “tarde de cinema” para espairecer, com o meu muito apreciado Tom Hanks. Enganei-me.
Como muitos saberão, o filme baseia-se pelo menos no facto real de ter havido pirataria ao largo da Somália. Resumidamente: o navio de carga é assaltado pelos piratas e o nosso capitão Tom Hanks é feito refém.
Os militares americanos acabam por matar os piratas e salvar o capitão, mas ele, depois de uma fase de grande autocontrolo, já se encontra muito abalado, em estado de choque. A bordo do navio militar, uma enfermeira faz-lhe algumas perguntas para ver como reage. No final, repete-lhe, enquanto o deita numa cama: “You’re safe, now, captain, you’re safe!”. Ao ouvir estas palavras, as lágrimas começaram a correr-me pelo rosto. De repente, vi à minha frente a sala de espera do IPO, os rostos de tristeza com que lá me deparei, o rol de ameaças de morte precoce que os médicos me dirigiram, as biopsias que tive de fazer, as tentativas de concretizar o tratamento paliativo que me ofereciam, enquanto esperaria a morte, a necessidade de me aposentar da Universidade por “incapacidade”, as dores fortes que tenho tido por causa da mastectomia funda a que fui submetida, toda esta necessidade de manter o medo sob controlo, num país em que nem sequer tenho a possibilidade de uma morte assistida legal se tudo correr pelo pior. E, de repente, só quis que alguém me deitasse também numa cama para descansar e me dissesse: “You’re safe, now, Laura, you’re safe!”. [Read more…]