Falei aqui no fenómeno de vitalidade que Manoel de Oliveira representa no panorama cultural português. Apesar de cumpridos em Dezembro passado os 101 anos, continua a trabalhar. Um outro caso invulgar no nosso cinema foi o de António Campos, não pela longevidade, mas pela persistência com que, indiferente a êxitos e a inêxitos, prosseguiu na senda que para si mesmo traçou. Um realizador que, começando como Oliveira, pelo cinema documental, raramente, ao longo do seu percurso, se afastou dessa via.
António Campos (Leiria, 29 de Maio de 1922 — Figueira da Foz, 8 de Março de 1999) foi um dos primeiros cineastas em Portugal a dedicar-se à prática do filme documentário, seguindo um conceito de antropologia visual. Explorou o filme etnográfico, recorrendo às técnicas próprias do chamado cinema directo. Foi um dos elementos fundadores do movimento do Novo Cinema em Portugal. Começou, na sua cidade, Leiria, em cuja Escola Secundária trabalhava como funcionário administrativo, fazendo pequenos documentários por si custeados até que, depois de 1970, passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian, trabalhando apenas naquilo de que gostava – no cinema.
Conheci António Campos nos anos 60. Foi-me apresentado pelo Camilo Mourão, um amigo, professor da escola de Leiria, onde Campos trabalhava. Escrevi algumas crónicas sobre ele, dei uma pequena ajuda em algumas das suas obras, escrevendo de parceria com Guilherme Valente – o homem da Gradiva – o guião para «A Invenção do Amor», de Daniel Filipe, e integrando a equipa que foi a Vilarinho das Furnas, antes de a povoação ficar submergida pelas águas da barragem, fazer um primeiro levantamento.
Na altura, Campos pediu-me que lhe escrevesse um guião em que a história da aldeia fosse narrada através dos olhos de um emigrante que voltava depois de Vilarinho desaparecer, recordando em flashbacks a aldeia como ela era. Escrevi um primeiro rascunho desse guião, mas não fiquei com cópia. Ter-se-á perdido entre os papéis de Campos (e não se perdeu grande coisa). Mas o realizador optou depois por um documentário puro e simples. Era aquilo que gostava de fazer. A ficção não lhe estava no sangue, embora tivesse capacidade para enveredar por essa via. Utilizava a ficção apenas quando queria tornar a realidade mais real.
«Um Tesoiro», 1958, «O Senhor», 1959, «A Almadraba Atuneira», 1961, foram entre os seus primeiros documentários os que mais exibidos foram pelos cineclubes portugueses. A partir de 1962 fez já alguns trabalhos para a Gulbenkian (exposições, peças da colecção., obras de construção). Foi então que, seduzido pelo poema de Daniel Filipe, pensou em fazer um filme sobre «A invenção do Amor», completando-o em 1965. Encarregou-me e ao Guilherme Valente (o homem da Gradiva) de escrever um guião baseado no poema.
Influenciados pelo clima distópico do «1984» , de Orwell, escrevemos um «roteiro» que Campos não seguiu integralmente; umas vezes porque as nossas sugestões implicavam meios de que não dispunha, outras vezes, pura e simplesmente porque não estava habituado a seguir ideias que não fossem as suas. O resultado, tendo em conta as condições em que o trabalho se realizou, não foi mau. Um filme de Campos, seguindo um pouco a chamada Nova Vaga e que estará mais próximo do Cinema Novo.
A propósito, o realizador Fernando Lopes descreve como mostrou “A Invenção do Amor” a François Truffaut. “Ele veio a Portugal preparar o ‘Peau Douce’ e organizei uma sessão com o António Campos. E o Truffaut ficou maravilhado. Mostrei-lhe o primeiro filme do António de Macedo, o meu filme ‘As Pedras e o Tempo’ e o Truffaut disse: ‘Pá, o que eu gosto é do António Campos.” Embora em patamares de realização diferentes, usando meios, actores, cenários, de qualidades completamente distintas, existem similitudes entre a «Invenção» e «Fahrenheit 451» ou «Grau de Destruição», o filme realizado por François Truffaut em 1966, a partir do romance homónimo de Ray Bradbury.
O escritório da editora onde trabalhava ficava num edifício da António Augusto de Aguiar, que deitava também para a Gulbenkian., o belo jardim da Fundação, era a vista das janelas do meu gabinete. Atravessando uma estreita rua estava no Centro de Arte Moderna onde havia um restaurante self-service. Muitas vezes almocei com Campos nesse restaurante. Falávamos de projectos que nunca chegámos a concretizar, porque ele nos deixou em 1999, mas também porque não gostava de trabalhar em equipa.
A este respeito e com alguma injustiça, diz na entrevista acima que não foi ajudado por ninguém no filme sobre «Vilarinho das Furnas». Não falo por mim, que apenas fiz um passeio até à aldeia e escrevi depois o tal guião, muito baseado no que o professor Jorge Dias sobre o tema produziu (guião que Campos não utilizou, a não ser em pormenores). Falo por exemplo, de uma prima dele (de cujo nome não me lembro) que sempre o acompanhava e que lhe fazia a comida e tratava da roupa, durante as filmagens, do Camilo Mourão, e de tantos outros que ajudavam como podiam e de acordo com o que ele pedia. Mas o Campos não fazia por mal – valorizava pouco essas ajudas. E, na realidade, o mérito era seu. A arte era sua.
Antes e depois de «Vilarinho das Furnas» (1971), realizou dezenas de documentários para a Gulbenkian. Depois de 1974, o seu nome tornou-se mais conhecido do grande público. As exibições dos seus filmes multiplicaram-se e a RTP passou-os com frequência.
Um “bom selvagem”, é como Paulo Rocha o classifica. Por seu turno, Fernando Lopes disse a seu respeito. “Ele viveu numa época particular em que o neo-realismo tinha muita importância – o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes… São leituras que ele fez. Fizemos todos. Depois, cada um saiu para o seu lado.”
António Campos saiu para um lado muito seu, criando um nicho especial dentro do documentário etnográfico, recorrendo à ficção, não como fim, mas como meio de explicar melhor o que pretendia. Não sei se a Cinemateca Nacional tem todos os seus filmes. Perder a obra de António Campos seria perder um elo na cadeia evolucionária do cinema português. Um bom selvagem, como lhe chamou Paulo Rocha. Não respeitou dogmas, não seguiu escolas, não quis inovar. Em suma, não fez concessões – fez filmes.
Sinceramente não conheço a obra de António Campos, nem tão pouco me lembro se no passado tinha ouvido falar dele. Pelo que tenho lido nos últimos dias sobre a pessoa e a obra, só não estarei presente no Teatro S. Pedro em Abrantes para visionar vários obras dele, que pela Palha de Abrantes vão ser divulgadas, se não puder. Um abraço e obrigado pela divulgação.