Muito barulho por nada (Memória descritiva)

Much ado about nothing, é, como se sabe, o título de uma peça do divino Shakespeare. Vi-a há uns bons vinte anos muito bem encenada e representada no Teatro da Cornucópia, dirigido pelo excelente Luís Miguel Cintra. Para o que quero dizer hoje, a história que o mestre William conta não interessa; com a minha consabida cleptomania, apenas aproveitei o título.

Nestes últimos dias, vejo aqui pelo blogue uma excessiva e desproporcionada agitação a propósito da eleição de Pedro Passos Coelho como novo líder do Partido Social Democrata. Pergunto: o que tenho eu, o que têm os cidadãos que não são militantes do PSD a ver com isso?

A cada facto da actualidade deve ser dada a importância que ele realmente tem e para mim (e se fosse só para mim, não valeria a pena escrever este post) isto é completamente irrelevante. Note-se que não quero minimizar particularmente o PSD e estaria aqui a dizer o mesmo se o espalhafato fosse a propósito de eleições internas do PS, do PCP, do BE ou do CDS. Quanto a mim, as eleições internas dos partidos são coisas irrelevantes para o comum dos cidadãos.

Diz-se que será o futuro primeiro-ministro de Portugal. Será ou não será, mas, mesmo que seja, o que irá isso mudar nas nossas vidas? Do Partido Social Democrata, ou do seu antecessor PPD, nunca saiu uma palavra, um conceito, uma ideia. Marcelo Rebelo de Sousa é um comentador arguto, inteligente, mas previsível. Não é um criador de ideias – é um consumidor e um destruidor das ideias alheias; Pacheco Pereira é um homem de cultura, inteligente também, mas confuso, perdendo-se em labirintos que ele próprio constrói. Intelectualmente, Pedro Passos Coelho, fica muito atrás de qualquer deles (mas talvez seja mais pragmático). Em suma, o PSD é um deserto de ideias.

Sá Carneiro, a figura de proa do partido, o que disse ele de importante? Este discurso que o vídeo acima recorda, é um exemplo de demagogia acabada, palavras de circunstância ditas numa altura em que usar gravata nos transportes públicos dava direito imediato ao apodo de fascista. Do CDS e do PPD à extrema-esquerda quem não abrisse uma intervenção com palavras deste género perdia o direito ao uso da palavra. E Sá Carneiro não foi excepção. E as ideias?

Comícios aparte, citem-me uma frase lapidar (já nem peço um discurso, um livro, porque não gosto de pedir coisas impossíveis). Lugares comuns, frases de sentido banal e de moralidade óbvia na melhor das hipóteses. Um deserto de ideias, repito, o PSD e o pensamento de Sá Carneiro. Nunca percebi a razão do culto. A única explicação reside na sua morte trágica. Hagiograficamente terá valor, mas é pouco em termos de filosofia política.

Por favor, não extraiam desta apreciação negativa ao panorama intelectual do PSD elogios aos outros partidos – estou apenas a falar do PSD, não se infira o que não digo. Embora desde já possa dizer o que toda a gente sabe – o PS tem na sua origem algumas bases de filosofia política (o pior é a prática), o PCP também e é mesmo o mais ortodoxo, o BE é a manta de retalhos que tudo cobre – Enver Hodja, Trotsky, Mao, Greenpeace e os touros de morte de Salvaterra de Magos; o CDS… O CDS existe fora dos mercados em época eleitoral? Estou só a falar do PSD.

Deliberadamente, não me refiro à personalidade do Passos Coelho. Não me interessa. Dará um primeiro-ministro? Claro que sim. Nem bom nem mau, antes pelo contrário – Pedro Sócrates ou José Passos Coelho – mais um para no dia seguinte ao da sua eleição começar a ser atacado por partidos da oposição, sindicatos, professores, médicos, bombeiros voluntários… Os atletas do tiro ao alvo gostam de mudar a fotografia com que exercitam a pontaria.

Já aqui tenho por diversas vezes afirmado o desfasamento evidente entre as designações dos partidos, as suas bases programáticas e a sua prática política. Quando eu era criança, havia uns brinquedos, creio que da Majora, com rectângulos de madeira – cabeças, troncos e membros que se tinham de colocar no devido lugar para formar as figuras certas. Pois os nossos partidos parecem o resultado desse jogo feito por uma criança estúpida ou maliciosa – a cabeça de um polícia, o tronco de um crocodilo e as pernas de uma bailarina – ou vice versa.

Dias atrás, a propósito do pensamento de Alain Touraine sobre o socialismo, falei sobre a discrepância entre a filosofia política do socialismo e a prática política dos partidos europeus que usurparam esse nome. Falando da social-democracia, eu diria que esta (numa definição sintética de enciclopédia) é uma ideologia política de esquerda surgida, como quase todas elas, no século XIX, como eco da grande revolução de 1789 e na sequência do socialismo utópico que afirmava o princípio da igualdade, da fraternidade e da liberdade, mas não encontrava o caminho para atingir tais objectivos.

A social-democracia surgiu da necessidade de encontrar uma transição pacífica da feroz sociedade capitalista da época, com crianças de cinco anos e mulheres grávidas a trabalhar nas fábricas, para uma sociedade socialista, igualitária, fraterna e livre. Era gente marxista, mas que lutava por uma evolução pacífica, democrática e sem traumas, para o socialismo. O berlinense Eduard Bernstein (1850 – 1932) foi o grande pensador revisionista do marxismo e talvez o principal teórico da social-democracia.

Façamos uma pausa e reconheçamos que este desiderato corresponde ao melhor do objectivo fundacional do PS. Mário Soares e companhia eram, pois, teoricamente, pelo menos, social-democratas. A praxis social-democrata diverge da marxista por defender o primado da luta política, sobrepondo-a à igualitarização social e à imposição de reformas económicas bruscas e traumáticas. Uma transição gradual do capitalismo para o socialismo, portanto. Uma espécie de quadratura do ciclo.

O que li na (quanto a mim paupérrima) obra política de Sá Carneiro não foi nada disto, mas sim a defesa de conceitos neo-liberais, a recusa da luta de classes. A recusa da revolução, portanto. Estou a referir-me a Por uma Social-Democracia Portuguesa (1975) que li há mais de 30 anos.

Tudo seria muito bonito, se o capitalismo não fosse um animal feroz, cioso dos seus interesses, ao ponto de destruir cidades com bombas nucleares para os defender. O reformismo gradual preconizado pela social-democracia, o tal socialismo de rosto humano, é uma coisa bonita como o milagre das rosas, mas impraticável.

Porém, o que este partido soit disant social-democrático preconiza nem sequer é isso – defende pura e simplesmente o princípio neo-liberal do cada um que se amanhe, nasces pobre, mas amanhã podes ser milionário e por aí fora.

O que acontece ao PSD não me interessa e só o digo por saber que, verdadeiramente, só interessa a quem faz da política carreira profissional. Porque se o PSD ganhar as próximas legislativas nada de importante mudará nas nossas vidas – o novo governo não voltará atrás com nenhuma das medidas erradas que o actual assumiu e acrescentar-lhes-á outras igualmente lesivas dos nossos interesses.

O PSD, diga-se, nada tem a ver com a social-democracia. Os social-democratas, os genuínos, queriam atingir o comunismo sem revolução, através de reformas sucessivas que iriam tornando o capitalismo cada vez menos malévolo. Os social-democratas portugueses não querem nada disso – talvez atingir um welfare state democrático, com um mínimo de perturbações sociais (isto para os mais revolucionários).

Não me parece que este assunto das eleições internas do PSD diga respeito aos cidadãos em geral. Muito barulho por nada.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Mas saber que o fim de Sócrates está próximo é uma excitação. Mas a social-democracia europeia mantem milhões de seres humanos com um bom nível de vida e em paz, o que nunca aconteceu em qualquer outra aprte do mundo. Quanto a Sá-Carneiro, na altura, eu costumava dizer, ” não tenho razões para seguir um homem que vai acabar mal. E não me enganei!

  2. maria monteiro says:

    O problema é que o país não se ergue de exitações. O problema é que o povo não se alimenta de exitações. O problema é que a saúde não se trata com excitações. O problema é que não se ensina nem se aprende com excitações. O problema é que há excitações a mais e medidas a menos

  3. maria monteiro says:

    Luís, o bom nível de vida e a paz são muito à base de silicone, é o faz de conta, é o ego construído de artificialidades, é muito o vender a alma a um qualquer diabo em figura de gente… assim se obtém um bom nível de vida… quanto à paz… depende do conceito
    um abraço na minha paz


  4. É como a Maria diz, as excitações colectivas não ajudam o país a avançar. A mim, (e provavelmente à maioria das pessoas), a ideia de que o Sócrates vai ser substituído pelo Pedro Passos Coelho, não me excita, nem me comove. Não terei saudades do Sócrates, nem o Passos será bem-vindo – é uma mudança que deixa tudo na mesma. Se há quem se excite com «mudanças» destas… Em todo o caso, não é líquido que o Sócrates perca as eleições (a mim é-me indiferente – nem votarei nele, nem contra ele – tentarei votar à margem dele).


  5. Esta Maria surpreende-me, mandando sempre um trunfo para cima da mesa. Quanto ao teu texto, Carlos, nada é preciso tirar nem acrescentar. É isso e mais nada. Endeusar Sá Carneiro e todos os Passos Coelhos que se lhe seguirem é lavrar num deserto de ideias. É uma triteza.


  6. A Maria é uma das pessoas mais importantes do Aventar, o seus comentários são, na generalidade, inteligentes e oportunos. Para mim é um mistério por que razão não escreve textos (para termos nós oportunidade de a comentar). Quanto ao Sá Carneiro e discípulos, tudo bm espremido não dá uma ideia que se aproveite. O Luís fala nos êxitos da social-democracia europeia – qual social- democracia? A do PSD? Não estará a fazer confusão com o SPD alemão, o do Friedrich Ebert e do Johannes Rau? É que esta coisa fundada pelo Sá Carneiro nada tem a ver com a social-democracia. Foi um equívoco ou um erro deliberado da ala liberal do parlamento caetanista.

  7. maria monteiro says:

    Obrigada mas … vocês são os meus escritores de eleição
    abraço por este 1ano
    maria


  8. Um abraço, Maria. Vamos lá a mais um ano.