Postal de Portugal (de Lisboa)

Elisabete Figueiredo

POSTAL DE LISBOA
‘Quando è entrato in l’aereo ho visto subito che lei non era una persona come tutte le altre’*
Levanto-me, em Palermo, às 6 da manhã (5 da manhã em Portugal). Tomo banho. Visto-me. Seco o cabelo. Fumo um ensonado cigarro. Constato que dormi 3 horas. Olho para a cama com vontade. Arrumo o resto das coisas. No hotel têm a gentileza de, apesar de tão cedo, me darem o pequeno-almoço. Um café duplo, forte e um bolo delicioso. O táxi chega. Vamos para o aeroporto de Palermo. O voo entre Palermo e Bologna é da Ryanair. Quantas vezes jurei a mim mesma nos últimos, digamos, 5 anos, que era a última vez que andava num avião da Ryanair? Seja como for, fico sempre contente por não ser a última vez, se entendem o que quero dizer. De qualquer modo, a Ryanair não recebia a minha preferência há pelo menos um ano. Ou mais. Havendo outras, honestamente, prefiro, mas que o bilhete seja um bocadinho mais caro.
Quando cheguei ao aeroporto de Palermo, já sabia que ia pagar excesso de bagagem. Vinte quilos de roupa sujíssima. Mais uns livros, mais os papéis do congresso de Florença. Sem novidade, portanto, quando, ao deixar a mala, a senhora me informa que teria de ir pagar o excesso. Assim fiz, à pressa, com stress, diante de um funcionário mal-encarado que, embora sabendo que o voo estava prestes a sair e que eu teria ainda de voltar ao drop-off e de passar pelo controlo, falava tranquilamente, ainda que com má cara, ao telefone de assuntos que obviamente (pelo menos para mim) não eram urgentes.

Lá paguei finalmente, lá murmurei entre dentes stronzo, ele lá me atirou com a ricevuta e lá segui para deixar a mala e para o controlo. Cheguei à porta de embarque e a fila era imensa. Tanto stress para isto. Dezenas de pessoas e malas que não havia maneira de caberem. Gritos, insultos, crianças que choram, pessoas que tiram roupa da mala e tentam enfiá-la noutras malas ou vesti-la ou sei lá eu. Um acampamento cigano. Nada demove as hostis empregadas da Ryanair de fazer pagar, por 2 centímetros a mais de mala, um elevado preço, além do stress, obviamente. E já sabemos, nada melhor antes de embarcar num avião do que toda aquela bestial adrenalina. Digo bestial como em besta, penso que se percebe bem. Efetivamente as empregadas da Ryanair mais não são que bestas arrogantes, ou melhor, que cães de fila que seguem ao milímetro as instruções, todas as instruções, da companhia. Sem atenderem à idade das pessoas, por exemplo (uma vez em Pisa vi duas empregadas destas tratarem mal um casal com perto de 80 anos. Ninguém se mexeu. Só eu disse no meu mau italiano que elas tratavam as pessoas como animais e se não viam a idade dos senhores. Um pouco de respeito, eh! Foi angustiante. Eu, pelo menos, achei angustiante. Aliás, acho a Ryanair angustiante. Fico deprimida sempre que voo em tal companhia.
A confusão para o embarque foi total. A minha pequena mala de mão (além da grande, já despachada e paga a peso de ouro) estava em conformidade. Avançámos como gado pela pista até ao avião. Esperámos bastante tempo para entrar. Deixei-me como sempre ficar para o fim, penso que era a penúltima da fila. Pressa para quê. De pé, seguramente não podemos ir. Sim, a Ryanair não tem agora lugares marcados quando fazes o check-in. Se queres um lugar específico, trata de pagar mais não sei quantos euros. Tudo isto coloca as pessoas, os passageiros numa posição pouco digna e indignante. Animais é o que somos para a Ryanair. E se é certo que somos também animais, penso, no entanto, que não somos gado. Mas pessoas. Entra toda a gente. As malas já não cabem em lado nenhum, muitas vão para o porão, o que deixa toda a gente indignadíssima. Vejo um lugar entre uma senhora e uma rapariga. ‘Permesso’ e sento-me com mala entre os pés. Confortável maneira de viajar num meio de transporte já de si tão tranquilizante, de facto. Além da mala de mão levo um livro (o mesmo O Sentido do Fim, do Julian Barnes) na mão, para o caso de conseguir ler no meio de tanto algazarra e de tanto anúncio da Ryanair. Compre isto, coma aquilo, faça aqueloutro, ganhe mais não sei o quê. O raio que os parta. Deixem lá o avião aterrar e vão ver que é desta que é mesmo a última vez que uso tal companhia. Penso eu.
Ainda há muita gente de pé no avião. Muitas malas para trás e para a frente. Muitos protestos. A senhora do meu lado direito diz qualquer coisa que não percebo e digo ‘scusa?’. Protesta ela também contra aquilo tudo, as empregadas, os cães de fila, o stress. Começamos a falar em italiano. Falamos muito as duas. Pergunta-me o que estive eu a fazer em Palermo, respondo-lhe que a passear e a conversa vai por ali fora. O avião finalmente descola com gente muito stressada dentro. A senhora diz-me que é americana e que vive em Palermo há 40 anos. Pergunta-me onde fiquei, o que fiz, se reparei no lixo nas ruas e eu vou respondendo e acrescentando e a conversa continua a desenvolver-se. A certa altura diz-me se viajei em grupo e eu respondo qualquer coisa como credo, não, odeio grupos desses! Viajei sozinha, gosto muito de viajar sozinha.

Ela olha para mim e diz-me que, de certo modo, já sabia. Porquê? Pergunto eu. Porque as pessoas inteligentes gostam de viajar sozinhas. (???) espanto-me sem nada dizer, eu. Ela percebe a minha pergunta sem que seja feita e acrescenta: ‘quando è entrato in l’aereo ho visto subito che lei non era una persona come tutte le altre‘. Fico um bocado atónita, quero dizer, aquilo foi dito de forma positiva, digamos. Mas? Claro que sou uma ‘persona come tutte le altre. Come no?’ Ela responde-me: para começar, o livro que traz na mão. Ah. Gosto muito do Julian Barnes, digo eu. E começamos a falar de literatura. E da literatura e das viagens. E da literatura e do mundo académico. Dou-lhe alguns nomes de autores que gosto. Aponta-os. Dá-me algumas também. Aponto-as. A conversa continua em torno de tudo e de nada. No fim escreve o email dela num papel para se alguma vez eu voltar a Palermo. Escrevo o meu também no papel, para se alguma vez ela for a Portugal. O avião aterra em Bologna, toda a gente bate palmas. Menos eu. Ela pergunta-me porque é que eu não bato palmas. Digo que não costumo bater palmas quando um avião aterra. Não sei, parece-me ser próprio dos aviões levantarem voo, voarem e aterrarem depois. Quero dizer, não vejo motivo para tanta excitação. E, acrescento, não sou capaz de bater palmas à Ryanair. Ri-se. Compreende-me. Despedimo-nos. ‘Tanto piacere, buona fortuna…’ vamos manter-nos em contacto. Vamos ver se sim, Maria.
Vou recolher a mala. De Bologna não quero falar. Deixemos as coisas ficarem como estão, assim, ‘chi sa cosa voglio io?’. Faço o check-in. Ainda falta muito para o voo para Lisboa. Mas quero ver-me livre do trambolho da mala. O voo é da TAP, estou prestes a chegar a casa, portanto, a esse lugar onde se fala a única língua que sei falar corretamente (e nem sempre) das cinco em que sou capaz de comunicar e compreender. Bologna ‘sotto il sole. Troppo calda’ em bastantes sentidos. ‘Chi sa cosa voglio io fare?’. Oh! São tantas as coisas que julgamos compreender e não compreendemos, afinal. ‘Chi sa?’.
Finalmente entro no avião. Pela primeira vez em muitos dias, tirando em ocasionais telefonemas, ouço falar a minha língua. E isso, já o disse, faz-me sentir já em casa. O avião vai praticamente cheio de italianos. Que conversam animadamente de uns bancos para os outros, como as pessoas em Nápoles gritam da rua para as janelas e das janelas para a rua. Familiaridade é o que sinto, em mais do que um sentido. Penso que é bom que eu compreenda cinco línguas (ainda que três delas não sejam assim tão diversas), que assim, além de poder ‘andare a girare il mondo’, posso ‘forse capire meglio lo stesso mondo’**, ouvir conversas, meter-me nelas se me apetecer. Os italianos ao meu lado e à minha frente vão animadamente a falar de Lisboa. Dos pastéis de Belém, do miradouro de Santa Catarina, do elevador da Glória, da comida. Lugares comuns. Mas que a eles lhes parecerão exóticos. Como ainda há pouco me aconteceu no país deles. Dizem tudo isto ao mesmo tempo que consultam um guia.
A mim apetece-me mais dormir, se me dão licença. São três da tarde e eu já há dez horas que estou acordada depois de ter dormido apenas três. Quando aterramos os italianos batem palmas. Apesar de já não ser na Ryanair, não imito os imito. Um deles exclama aparentemente surpreendido: mas o aeroporto de Lisboa é muito moderno!! E eu fico a pensar que raio dirá aquele guia sobre Portugal para que um aeroporto perfeitamente idêntico a tantos outros por toda a Europa lhes possa causar surpresa. Não quero aprofundar, porém. Prefiro tentar fumar um cigarro, agarrar no trambolho de 20 quilos de roupa suja e ir para casa. Consigo fazer ambas as coisas. Entro na gaiola para fumadores e quase volto para trás com o cheiro e o fumo. Devo fazer uma cara cómica porque um homem muito alto à minha frente olha para mim divertido, faz um imenso sorriso e diz em inglês: vê? Nem precisamos fumar! Sim, respondo eu, também em inglês, há tanto fumo aqui que chega para repor os níveis de nicotina em dois segundos sem sequer acender um cigarro. Ri-se e diz que é irlandês e que em Dublin, de onde vem, há um terraço simpático para os fumadores. Digo que sim, que sei, que é simpático o terraço sim. Acrescenta que bom, esta gaiola sempre é melhor do que não ter espaço para fumar. Concordo com a cabeça. Na Alemanha, sabe, não se pode fumar em aeroporto nenhum. Digo que não sei bem, mas pelo menos no de Frankfurt sei que se pode, em gaiolas como esta onde estamos agora. Diz que sim, nesse sim. E depois que é o seu segundo cigarro do dia. ‘Oh you’re not a smoker after all’. É sim. Mas hoje só fumou dois. Rio-me. Apago o cigarro. Ele apaga o dele. Olha para mim como se eu devesse acrescentar qualquer coisa ou fazer mais alguma pergunta. Não acrescento. Não faço. Faz ele um grande sorriso outra vez, um sorriso muito alto e diz ‘bye bye’.
Bye bye’ parece-me bem. Cheguei a casa. Sou exatamente uma pessoa como todas as outras outra vez.

Olá Lisboa.

* «quando entrou no avião vi logo que você não era uma pessoa como todas as outras»

Comments

  1. Uma lufa-lufa cheia de stress (continuo a não ligar ao OA), com 20 kG, que daqui a nada vão de novo cheirar a roupa fresca depois de uma barrela… e uma viagem linda terminada!
    (Aqueles 40 graus é que ainda me incomodam…)
    Beijos

  2. motta says:

    Obrigado, Elisabete, por estes postais de água fresca.

  3. Manuel obrigada pela leitura atenta dos meus postais. os 20kg já foram lavados e engomados e tudo 🙂

  4. motta obrigada eu, por ter lido.

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