Memórias do meu Abril

Há 40 anos vivia num aldeia da zona oeste, num vale assente entre montes, onde só ia quem tinha que ir, pois não era zona de passagem. E esse isolamento sentia-se na mentalidade das pessoas, fechadas sobre si próprias, sobre o trabalho nos campos, ao ritmo da migração da geração mais nova para a zona da Grande Lisboa e sobre a vida uns dos outros. Os homens usavam um barrete preto com uma borla na ponta, que servia também para guardar o tabaco e as poucas moedas que tinham disponíveis para o dia a dia, as mulheres vestiam-se de escuro, e na hora da missa usavam véu sobre a cabeça.

A vida das mulheres resumia-se à casa, a lavar no chafariz (já que água canalizada era uma miragem, tal como a luz eléctrica em muitas delas) e a alguns pequenos trabalhos no campo. Era o Portugal do “respeitinho é muito bonito” e o homem é que mandava na casa, na mulher e nos filhos.

Os meus pais eram muito jovens, na casa dos 20 quase à beira dos 30, mas tinham já feito uma incursão pela estranja. Meu pai tinha emigrado primeiro, com uma das famosas autorizações de Salazar, depois de ter passado 31 meses, em Alto Moloqulé, em Moçambique, em plena zona de guerra, onde vira morrer muitos dos seus camaradas.  Primeiro partira ele, com contrato de trabalho, mas sem casa. Mais tarde juntar-se-ia a minha mãe e, só tempo depois, tinham voltado para me vir buscar.

Mas o sabor da estranja, não era algo que quisessem ter por muito tempo. Até porque, corria entre os emigrantes, que filhos que começassem a estudar por lá, não mais queriam voltar a Portugal, obrigando os pais a estadias forçadas em terras que não eram as suas (a verdade é que vieram a arrepender-se amargamente dessa decisão, mas isso já é outra estória). Por isso mesmo, quando chegou à idade de entrar para a escola primária, voltei para a aldeia, com a minha irmã que entretanto nascera, para junto dos meus avós maternos e bisavós.

Era a menina doce, mas “reclamadora” tal como os seus longos cabelos com caracóis, a quem, por força, queriam feminizar, com vestidos e saias, mas que teimava em fazer tantas, que culminavam com canetas de aparo e lápis espetados na frente das mesmas, por forma a terem que vestir-me as belas das Levis, que os meus pais mandavam do país onde ficaram.

Outra das lutas eram os cabelos. O que passei à sua conta! Escovas ninguém usava. Somente um pente, que se iam molhando em água, teimava entrar no meio dos famosos “ninhos de rato” (como chamavam aos nós que o fino cabelo fazia) para dar forma aos longos canudos, meio alourados que me cobriam a cabeça e caíam sobre os ombros.

Livrar-me daquele tormento era coisa impensável, sobretudo para as avós. Mas chegou a um ponto em que as birras e as choradeiras matinais já eram tantas, mais os cortes dados à tesoura ou à navalha, assim que os apanhava a jeito e sem que nenhuma delas visse, que, quando já a minha mãe estava de regresso, acabaram por desistir e assentiram fazer-me a vontade.

Naquela manhã, tinha eu 9 anos, lá nos metemos a caminho da única cabeleireira que havia na aldeia. A minha alegria era tanta que, podem crer,  ainda hoje recordo quase de cada passo que dei até lá chegar.

Tric! Tric! Tric! “Pára um bocadinho quieta “nina”!”  “Oh Antónia achas que assim fica bem?” “Tem lá calma, miga, que está quase e já te dou um espelho!” “Oh rapariga pára lá senão não fica certo!”. E pronto lá de me deram um espelho. Senti-me linda e finalmente tinha ar de menino, como sempre quisera! Agora já podia correr à vontade e já não tinha nada que se enrolasse nos botões da bata branca que, como todos, tínhamos que usar na escola primária.

O caminho de volta a casa ia sendo feito aos saltinhos ao lado da minha mãe. Que sensação de felicidade! Mas quando íamos a descer a ladeira, que liga um dos lugares da aldeia àquele onde nós vivíamos, vem a “Ti Conceição”, mulher de idade, de longas saías com o habitual avental à frente, ter com a minha mãe, lavada em lágrimas e a perguntar se sabia do que se estava a passar em Lisboa. Lembro-me de a ter ouvido dizer que ouvira na rádio que estava a haver uma revolução, que já tinha havido tiros e que iam matar toda a gente. “Ai Jazus, meus ricos filhos!” “Oh Ti Conceição, vamos lá a casa ver se dá alguma coisa na televisão” – sugeriu a minha mãe. A nossa casa era das poucas da aldeia que já tinha televisão, que os meus pais tinham trazido quando voltaram.

Ao longo do caminho até nossa casa, que ficava mesmo no centro da aldeia, mais gente se foi juntado e quando entrámos na sala, onde estava a televisão e que servia de quarto para mim e para minha irmã, já eram tantos que quase não havia onde sentar. A minha felicidade transformou-se em medo. Não sabia o que era uma revolução, mas de guerra tinha ouvido imensos relatos feitos pelo pai. Ai! Aquela gente toda ali ainda me assustava mais.

Depois já só me lembro de, à noite, termos jantado muito cedo e de ter tido a casa novamente cheia de gente colada ao telejornal, em silêncio total, mas mesmo assim com muitos “shius!” pelo meio, para os mais pequenos, que ali a um canto, entre brincadeiras com a minha casa de Lego, ia lançando os olhares à TV.

Na minha memória, sempre o 25 de Abril ficou marcado como um dos dias muito felizes da minha infância, por conta do corte de cabelo. Mas da revolução, até a uma idade de maior consciência, guardei-a como uma coisa muito pouco positiva. Os relatos do bom do Salazar, da falta de respeito e das ocupações, sucediam-se na família. O avô materno foi uma das vítimas: a casa que tinha numa das zonas pobres de Lisboa, foi-lhe ocupada e a raiva à revolução foi com ele para a cova.

Hoje grito “25 de Abril sempre!”, lamento que muitos dos ideais não se tenham cumpridos e luto para que muitas das conquistas não nos sejam roubadas.

O tempo ainda é nosso, mas é mais ainda dos filhos que educamos. São eles a Gente que esperamos para que um outro qualquer “25 de Abril” tome forma.

 

Comments

  1. Alice Esteves says:

    Bela descrição da época que se vivia na aldeia, revejo-me um pouco no que escreves, mais ainda porque os meus pais também emigraram para França e quando se deu o 25 de Abril já nos encontrávamos em Portugal à pouco mais de um ano, tb tenho lembranças vagas desse dia, lembro-me principalmente de no dia que fui à escola de retirarem o quadro do Salazar da parede da escola.

  2. anabela bras says:

    muito bom. tens muito jeito.

  3. Antonio Campos says:

    Parabéns bom retrato é também parecido com o que vivi, por ser da mesma geração e região, mas não dos cabelos! Bom texto, sem dúvida.

  4. Bela história, um 25 de abril diferente em tudo. Parabéns.

    • fatima ferreira says:

      25 de Abril foi o dia em que o nosso país mudou e acabou a sua ditadura. Um bem haja aos revolucionários, desde o Canadá

  5. Se me lembro e tu naquela altura já eras “menina bem” até tinhas televisão, apesar de morares na aldeia e eu em lisboa, Brandoa, mas nunca fui privilegiada e não tinha televisão ainda … lembras-te e hoje como te sentes? Eu, querida amiga da “chinchada” Sinto-te mais Abril de 74 agora e fico feliz por isso! Gosto muito de ti Maria, hoje, ontem, há quarenta e sempre! sempre!

  6. Luis says:

    Lindo faz-me recordar vivencias antigas

  7. Linda descrição. Os meus pais forma emigrantes e nessa altura vivíamos fora de Portugal. emociona-me essa tua descrição. Obrigada!

  8. Gostei muito do artigo de quem diz ter 7 anos em 1974 – Interessante pois que nasci muito antes e era mais ignorante, ainda do que hoje e apetece-me responder-lhe como segue – Antes do 25 abril aconteceu ter perdido o B.I: e tive a rara e + única sensação de que – e agora ?? Se me passar um autocarro por cima e desaparecer, sem identificação “não existo” e, na altura não tinha nenhum outro doc pessoal nem carta de condução nem cartão utente nem de votante nem de contribuinte – quase entrei em pânico porque ao viver sozinha ainda, sem existência de exames de ADN, e sem ser conhecida nesta cidade achei que SEM B.I:não existo (para a sociedade) – Agora que tenho cartões até em excesso parece-me ter sensação idêntica já que, reformada (mas agora já sem família por razões de idade) e com reforma a desaparecer ano a ano, IRS e IVA a subir, subsídios cortados, ADSE a subir, saúde cada vez mais ausentada e mais cara e mais longe do lugar onde havia, em plena 3ª idade e sem qualquer forma de protecção depois de vida de trabalho, sem qualquer forma de respeito pelos velhos que afinal DIZEM que são pagos na sua reforma pelos jovens que estudaram de borla com o meu IRS (o que na altura a mim não sucedeu pois pagava quem estudava), se for hospitalizada ou fico numa maca perdida num corredor qualquer ou saio do hospital 2 dias antes de morrer – em cada – ou se estiver grávida nasce a criança num carro de bombeiros encostado na beira da estrada, em dia de chuva e nevoeiro e de engarrafamento, a sensação de agora não é a de que não existo mas, pior, é a de que NÃO SOU – não sou vista – não conto – sou impecilho – serei mesmo descartável – só porque NÃO HÀ DINHEIRO (é bom ouvir a jurista Mª josé viúva de Saldanha Sanches na SIC de ontem) alguém paga a minha reforma – mas que evolução – que não era expectável e não sei o que fizeram do dinheiro que me sacaram em impostos e descontos – só pago – só devo e incomodo – não não vou de novo ouvir Santana & Vitorino

  9. António manuel R. de Morais says:

    Maria a escrita escorreita e um sentir tão autêntico fazem-me sempre sentir um leitor fiel à espera de mais. Que sonhos tivemos então! Como ainda hoje necessitamos de sonhar.

  10. Fernando António da Costa Rocha says:

    Memórias de Abril todos temos, mas estas tem um grande sabor ao Portugal salazarento, que muitos de nós odiávamos, mesmo, alguns, sem saberem quase nada de política. Mas a vida, para muitos, nesses tempos negros, era, para além da extrema penúria da maioria dos portugueses, muito feia e triste, sem saídas, sobretudo de ascensão social. Quem nascia pobre, de um modo geral, vivia e morria pobre !
    Apesar das dificuldades imensas porque hoje passamos, hoje, as coisas são diferentes. E temos que fazer tudo para que não voltemos (muitos de nós, portugueses, como naqueles tempos) uma vida sem direitos, feia e triste !!!

  11. Ana Marçal says:

    Parabéns pelo texto. Muito bom.

  12. Cristina Martins says:

    O país era tão cinzento que esta estória poderia ter acontecido aqui à beira Ria de Aveiro. De restp se por um lado fazemos a apologia do futuro e que não devemos focalizar-nos no passado o importante é não o branquear e temos responsabilidade para os que vêm depois de nós. Ainda há quem diga que “antigamente é que era bom”… parabéns ‘E’ e fico feliz por algures nestes 40 anos te ter conhecido pessoalmente nas Caldas…:)

  13. É um texto, como um belíssimo “retrato” a preto e branco da época. Os salpicos de vermelho por cima, conferem-lhe uma autenticidade que o tempo torna nítida.

    Apesar dos salpicos dos exageros, creio que podemos dizer que tivemos o luxo de ter uma revolução pacífica que, hoje mesmo, tomara muita gente ter. Os que lutam na Ucrânia, na Síria, no Egipto, etc. querem aquilo que nós tivemos e para isso muitos morrem…

    Por vezes cuspimos num dos melhores momentos da nossa história e é pena que assim seja. Lá porque não soubemos aproveitar a democracia a 100% não quer dizer que tenhamos falhado completamente. Hoje em dia, temos acesso a cuidados de saúde invejáveis, podemos ir para uma esplanada brindar à liberdade sem sermos presos, podemos falar das nossas frustrações sem termos medo de que alguém nos vá denunciar, etc. Essas coisas são liberdade, e isso não tem preço!

    Somos tolos porque não sabemos lidar com dinheiro na democracia, mas seríamos os mesmos tolos em ditadura.

    Desfrutar o feriado, mas pensando em como podemos fazer a diferença para Portugal ser um país melhor para os que vêm depois de nós. E ter orgulho de sermos portugueses: podemos ter errado, mas o futuro está cheio de oportunidades para fazermos coisas certas.

    Todas as madrugadas são as madrugadas que nós esperávamos…creio que é a mensagem subliminar do texto , e que subscrevo inteiramente.

    Parabéns, Maria. 🙂

  14. Inês castro says:

    História bonita…adorei, parabéns!

  15. Natacha Narciso says:

    Muito bom retrato: Abril com memórias pessoais, vividas na região. Tens que ganhar fôlego para um romance. Fico a aguardar.

  16. Gostei imenso de ler a transparência com que foi escrito, revi-me também um pouco nessa época e saltou-me á memória alguns episódios de grande esperança, apesar de não ter ainda muita consciência do que se estava a passar,porém percebia que havia uma grande mudança para todos nós ter-mos direitos á igualdade e respeito,só por isso continuo com esperança que outro 25 abril aconteça,contudo desiludida ainda,( mas sim valeu a pena) fico á espera que daqui a pouco tempo possa ler muitos mais textos da Maria, e que o conteúdo seja a cara da alegria de todos nós! Parabéns e obrigada abraço

  17. A história está por fazer. A pior parte, a menos bela

    http://terraimunda.blogspot.pt/2014/04/nunca-ouvimos-voz-dos-combatentes.html

  18. Adorei! Também vivia numa aldeia da tua zona….mas tinha só quase 4 anos e não me lembro de nada. Reconheço os ambientes e as regras que eram impostas, que foram continuando a existir nas palavras da avó. E que bom foi vir para Longe!
    Escreves muito bem, continua.

  19. José Matias says:

    Genial……
    Luv it….. 🙂

  20. Ana Sousa Santos says:

    Muito bem, podes continuar! Gostei muito!

  21. João Edgar says:

    Bela descrição com a habitual qualidade de escrita que esta autora já nos habituou!!!

  22. Ana Paula Dantas says:

    Muito bom! As tuas descrições daquele espaço rural, continuam a deixar-me sempre com a sensação que estou lá, juro que conheço as personagens que descreves e andei naquelas ruas. Quando aos problemas com o cabelo fino…, como te entendo 🙂 Parabéns!

  23. Nuno Garcia says:

    São estas histórias que nos deixam a pensar e acreditar que podemos mudar algumas atitudes, por outro lado não perder a identidade, as tradições e costumes é importante. Gostava de ver todas estes textos reunidos num livro seria deveras interessante. Bem haja quem escreve assim com determinação e realismo.

  24. No espaço de um par de anos, a ilusão de liberdade infantil esteve tanto nas crianças como nos adultos dessa época que começava, com o fim da infância também veio o fim das ilusões para muitos adultos. Muito bem escrito.

  25. Joaquim do Carmo Vinagre says:

    26/04/2014 0:01
    Joaquim Vinagre
    Muito bem gostei de ler.Quero agradecer a aportunidade que me deu de ler a sua crónica do dia 25 de Abril de 1974. Eu encontrava-me em Évora regressado de Angola onde tinha cumprido a minha comissão de serviço militar obrigatório.Quem esteve numa das 3 Colónias sabe o que representou o fim da guerra Colonial com o movimento dos capitães.Ah… quase me esquecia de lhe dar os parabéns pela sua bela prosa..

  26. Anabela Marques says:

    Muito bom. Senti-me a viajar no tempo, como sempre. Parabéns pela bela escrita!

  27. Mia Carvalho says:

    Parabéns, bom retrato. Mto bem escrito. A minha vivência foi diferente, tinha 18 anos, morava em Lisboa, no dia 25 não me deixaram sair, mas no dia 26 corremos tudo ◆ Quartel do Carmo, A. Maria Cardoso, Camões, terreiro do paço, etc◆ o pior foi qdo cheguei a casa….mas aí já não me puderam tirar o que tinha vivido. Bjinho

  28. Nuno Gonçalves says:

    No meio disto tudo, fico com pena do seu avô… o sentimento que lhe assistiu era muito legítimo, só foi pena ter morrido sem que lhe tivesse sido devolvido o seu bem!!! Enfim, a libertinagem de abril (escrevo em letra pequena, não por imposição do AO, mas pela pequenez que significa para mim) no seu melhor!

  29. antonio caldas says:

    Gostei do texto e tal como tu, muitas pessoas têm memoria do 25 de Abril, por outras coisas associadas que não a revolução? Que é lá isso de revolução? Porque não crias um blogue teu, e perdes o receio de dares a cara aos teus escritos? Acho que não necessitas desta mascara! Ia para te mandar um beijo, mas como és arrapazada, não vá o diabo tece-las e ainda me apelidarem de algo que não sou!. Aquele abraç() do Tonho das Caldas

  30. luisa luz says:

    Muito bom ! Devia escrever as suas memórias !

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