Já não há fantasmas

Aqui no bairro há um palacete que está há tempos para ser convertido em qualquer coisa ao serviço dos turistas mas não há meio de isso acontecer porque é preciso muito dinheiro para recuperar aquelas velhas paredes e o lugar é pouco apetecível para camones. É uma casa bastante feia, construída ao gosto novo-rico da época, e foi abandonada há mais de uma década. As portadas já não cerram e deixam esvoaçar cortinados negros e há vultos a assomar-se às janelas em noites de luar.

Não há crianças a pular o muro para ir explorar a casa porque as crianças já não fazem essas coisas, têm o tempo tomado por actividades extracurriculares, mas é uma casa claramente assombrada, a pedir que crianças com tempo livre vão lá assustar-se. E é precisamente neste ponto que começa o diferendo entre mim e o bairro. Espantosamente, já ninguém acredita em casas assombradas. Na mercearia olham para mim como se eu tivesse acabado de defender que é o sol a girar à nossa volta.

– Assombrada?! Ahahaha, diz cada coisa! – ri-se a merceeira, uma mulher de sorriso franco e rosto emoldurado por caracoizinhos de garota.

Os outros clientes também acham muita graça que “hoje em dia”, “nos tempos que correm”, com “tanta tecnologia” e “a internet” haja gente que acredita nessas histórias. Não é que eu acredite ou deixe de acreditar em fantasmas, só acho que o bairro se torna muitíssimo mais interessante se tiver uma casa assombrada. Também gostaria que por aqui houvesse um lago com um monstro pré-histórico que aparecesse em manhãs de neblina, mas o último terreno livre foi ocupado pelo supermercado e já vejo poucas possibilidades de isso vir a acontecer.

Até o meu filho, criança que está a ter uma esmerada educação como criptozoólogo amador, passa pelo palacete e torce o nariz quando eu lhe falo no altíssimo potencial de assombramento que têm aquelas paredes. Os fantasmas, definitivamente, são coisa careta. Mas continuo a não perceber essa concepção de assombramento e tecnologia como coisas que se auto-excluem. Em qualquer caso, creio que preferia conversar com um fantasma do que com um sistema operativo e não vai há muito que me sentei, boquiaberta, a ver um filme em que um homem se apaixonava pelo sistema operativo do seu computador.

O fantasma foi, pelo menos, humano, num outro tempo e talvez num outro espaço, e se algum canal de comunicação mantém com estes será por curiosidade, talvez por incompletude, arrependimento, talvez amor, desejo de testemunhar aquilo de que foi privado de viver, e com tudo isso posso identificar-me. Nada do que é humano num fantasma me é estranho, afinal.

Talvez os visitantes dos castelos assombrados se ocupem agora a tentar tirar uma selfie com um fantasma, coisa que deve ser complicada, porque fantasma que o seja de verdade será arisco às fotos, mas sobretudo desejará produzir uma impressão em quem o avista, não necessariamente medo, mas alguma perturbação que parece difícil “nos tempos que correm”, e não há grande disposição para o assombro quando uma pessoa está a actualizar o seu estado ou a espremer um pensamento para 140 caracteres. Já não há, assumamo-lo, condições para assombrar.

Já para não falar do dislate que é mencionar fantasmas quando os números macroeconómicos são o que são, e a borbulha imobiliária está para rebentar, e a Grécia, e a China, e o Japão, por favor, os tempos não estão para disparates.

No meio de tudo isto, que farão os fantasmas? Aborrecem-se, contam histórias mil vezes repetidas uns aos outros, atravessam as paredes de um lado para outro, de um lado para outro, de um lado para outro, como hamsters neuróticos? Atrevem-se a posar para uma selfie? Passam em frente das câmaras de vigilância na esperança de que alguém os veja e apareça, talvez com as pernas a tremer, o coração aos pulos, mas movido por essa curiosidade por uma boa história que ainda é o que nos faz sair da cama a muitos? Pergunto.

Fez-se um grande silêncio na mercearia. A merceeira, que é uma rapariga prática, rematou bem:

– Não quer levar um melão? É muito docinho.

Definitivamente, neste bairro ninguém me compreende. Deve ser por isso que eu gosto dele.

A foto é de um dos filmes da minha vida: The Ghost and Mrs. Muir.

Comments

  1. Konigvs says:

    “Hoje em dia”… mas qual é o argumento? Os espíritos hoje em dia deveriam estar todos no computador a atualizar o seu perfil da rede social da moda e a tentar interagir com outros espíritos em vez de assombraram os vivos? Ou deveriam estar sentados no sofá a jogar o novo jogo-maravilha acabado de sair? Ou deveriam estar sozinhos, maravilhados com a nova bugiganga eletrónica a romper os indicadores nos ecrãs?

    Acredite que, como o outro dizia, eles andam por aí, tal como muitos de nós também vão andar um dia. Mas não diga a ninguém que eu acredito nessas coisas, porque nem pareço deste tempo.

  2. Para quando um livro, Carla? Uma vez mais, sublime…

  3. Joam Roiz says:

    Bom, mas não tão bom como outros que já aqui nos deu a ler.

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading