A longa noite cavaquista

14101158833082Cavaco Silva entrou para a política, pelo menos, em 1980, tendo sido Ministro das Finanças de Sá Carneiro durante um ano.

Se fizermos de conta que só se está na política quando se ocupa determinados cargos, Cavaco Silva, nos últimos trinta e seis (36) anos, esteve, então, na política, cerca de vinte e dois anos, incluindo a já referida passagem pelo Ministério das Finanças, uns meses como líder do PSD na oposição em 1985, dez anos como primeiro-ministro (1985-1995) e outros dez anos como Presidente da República (2006-2016).

Se em vez de fazer de conta, formos sérios, a verdade é que, desde 1980, com mais ou menos poder, mais ou menos exposição, Cavaco Silva esteve sempre na política. Os momentos em que se afastou corresponderam a escolhas estratégicas, como quando deixou de ser primeiro-ministro para preparar a primeira candidatura à Presidência ou quando soube esperar dez anos, depois de perder com Jorge Sampaio, até conseguir o seu objectivo, tendo regressado, entretanto, ao Banco de Portugal e à docência universitária, duas formas de poder, porque, no mínimo, conferem prestígio e são, ainda, tribunas privilegiadas.

Em 41 anos de democracia, Cavaco Silva é, portanto, o político com mais tempo de actividade em Portugal. Se é certo que um país não resulta apenas de quem o dirige, não é possível iludir a influência deste homem na nossa História.

Tal como Salazar é, sem dúvida, a figura fundamental da História de Portugal no século XX, Cavaco Silva tem um estatuto semelhante no que respeita ao Portugal democrático. Um país, no entanto, só se pode ressentir por ter tido como figuras paternas dois homens de visão tão curta. Ainda hoje, sofremos os efeitos da salazarismo e, por maioria de razão, os do cavaquismo, com ou sem Cavaco. Talvez seja possível afirmar que só num país marcado pelo salazarismo um homem como Cavaco teria alcançado tanto poder. Cavaco, aliás, tem todas as características do genro ideal para um sogro salazarista.

Não quero dizer que o ainda Presidente da República seja um ditador, embora não seja propriamente um entusiasta da democracia, geradora de discordâncias a que chamou “forças de bloqueio” e de escrutínios vários que não lhe permitem ter, ainda hoje, uma imagem tão impoluta como a que apregoa, porque há histórias obscuras de valorização de acções.

A história de Cavaco será feita e ele próprio tentará, com toda a certeza, fazê-la, isto é, controlá-la, até porque sempre viveu obcecado com o seu lugar na História, tendo tido a especial preocupação de criar a ilusão de que não era um político e sim um homem investido de uma missão que o encontrou por um dos acasos do destino, sendo de realçar o mito da revisão do Citroen, esse outro milagre de Ourique.

A minha chegada à idade adulta coincidiu com a ascensão de Cavaco ao poder, o que quer dizer que juntei à sorte de praticamente não ter vivido em ditadura o azar de estar há trinta e seis anos submergido na longa noite cavaquista. O político mais importante da democracia portuguesa é um medíocre doutorado, um “génio da banalidade”, o que é grave, porque, no fundo, é o que somos todos, mesmo os que não são doutorados.

Graças também e muito a Cavaco, perdemos capacidade produtiva, nos anos 80-90, e ficámos à mercê do capitalismo selvagem (talvez não haja outro), com a ajuda que deu a gente como Sócrates e Passos Coelho, nos seus dois mandatos, tendo colaborado activamente na destruição de direitos humanos em nome de défices e de bancos, sempre com base na teoria do “bom aluno” e do insulto a um povo inteiro que teria vivido acima das suas possibilidades.

Segundo parece, segue-se a primavera marcelista, inaugurada com uma mensagem própria de quem está, há anos, habituado a conspirar. De qualquer modo, uma primavera, ainda mais se marcelista, pode ser sinal de que a revolução está próxima. Lá iremos.

Comments

  1. Mário Soares também andou muitos anos pela política, em 1974 já integrava governos, em 2005 candidatou-se à Presidência.
    Existem outros que andam na política há perto de 40 anos (começaram nas jotas ainda adolescentes), mas não tiveram o poder de Cavaco ou Soares… (e ninguém no PSD ou PS teve o poder e influência desses 2).
    “…sendo de realçar o mito da revisão do Citroen, esse outro milagre de Ourique.”
    -Para credibilizar o episódio, existe outro, Eurico de Melo estava em casa de roupão quando lhe telefonaram a requisitar a presença na Figueira, porque aquilo estava a mudar. Quem ficou a perder (ou talvez não), foi João Salgueiro…

    • António Fernando Nabais says:

      António, Soares é um sério concorrente à hegemonia de Cavaco, mas não esteve tanto tempo no poder (e o tempo que se está no poder tem bastante importância). De resto, apesar de o integrar no grupo de políticos com quem iria beber um copo (tal como Marcelo, aliás), não sou propriamente um admirador da figura, por muito passado antifascista que tenha, porque há presentes que estragam passados.

  2. Alberto says:

    Fora e piqueno detalhe de ter ganho sempre em eleições livres. Ou seja escolhido pelos seus pares ( pessoas banais e nao iluminados Nabais).

    Vc é um grande democrata.

    • António Fernando Nabais says:

      Ai meu Deus, que não se pode dizer mal de quem ganhar eleições livres! E ninguém me avisou! E, agora, estou aqui transformado em defensor das ditaduras! Estou tão arrependido, logo eu, que andei a criticar o Sócrates e o Passos, tão boas pessoas porque ganharam eleições com maioria absoluta e tudo! Peço desculpa, sou um mau democrata! Feio, feio!

  3. joaovieira1 says:

    Cavaco Silva, com 4 maiorias absolutas, duas como PM, duas como PR, foi, entre os nossos dirigentes políticos de topo, o mais controverso de todos, aquele que, durante cerca de 30 anos, marcou, indelevelmente, a evolução política, económica, financeira e social do país, interna e externamente. Muitos/as ainda hoje, responsabilizam quase exclusivamente Guterres, Sócrates (sobretudo este) e o PS, desde 1995, pela má governação e decisões ruinosas de investimento público que conduziram à gravíssima crise que, entre nós, subsiste, violenta. Tais cidadãos/ãs esquecem ou pior, pretendem tão somente, encobrir, a herança das governações cavaquistas (10 anos), barrosistas (3 anos) e santanistas (6 meses). Na verdade, Cavaco, enquanto presidente do PSD, ao alimentar, com algum sucesso, um posicionamento centro-esquerda, mas odiando e repudiando tudo o que daí viesse, apenas teve que imaginar uma estratégia eleitoral simples: motivar, atrair e galvanizar todas as classes, grupos sociais e personalidades relevantes da banca, do mundo empresarial e da sociedade, em geral, fora e dentro do país que, de algum modo, se sentiam prejudicados pelo 25 de Abril/74 e pelas decisões de fundo tomadas quanto à descolonização, rumo da economia, finanças e investimento. Foi fácil (mas, extremamente, caro ao país como um todo), assenhorear-se e colonizar, praticamente, todo o centro-direita e direita que viriam, maciçamente, a dar-lhe o voto, primeiro como PM, depois, cerca de 10 anos mais tarde, como PR. Comparados com ele, Barroso e Santana, são uns verdadeiros amadores e aproveitadores.
    Cavaco, a partir do próximo 09/03, sai da presidência e, com toda a probabilidade, também, da vida política que, para ele, era uma maçada. Cavaco nunca se apercebeu, não quis, não pôde ou não soube furtar-se aos compromissos pessoais, sociais e políticos que assumiu, desde a primeira hora, hora em que, com alguma vaidade, ambicioso e ávido, quis unir todo o centro direita e direita sob a sua asa, pretensamente de centro-esquerda, para criar as condições propícias a uma retoma e controle forte do poder político, que, ao fim e ao cabo, lamentavelmente, para a grande maioria dos portugueses/as, acabaria por abrir portas a todos os desmandos e ambições da sua numerosa corte de correlegionários e amigos que ajudou a promover enquanto governantes, banqueiros, assessores, consultores, empresários, etc.
    Agora que Cavaco se despede, saindo pela porta pequena, interessa, sobretudo, salientar que, historicamente, os seus mandatos como PM e PR primam pela criação de focos de tensão geradores de crescente desunião e desagregação social e política e pela defesa intransigente dos privilégios e benesses das classes e grupos sociais detentores do poder económico, financeiro e empresarial, tudo em prejuízo das classes e grupos a quem o 25 de Abril/74 restituiu ou pretendeu restituir a liberdade, a iniciativa e a esperança de melhores dias.
    Cavaco, porque, simplesmente, não confiava e não confia em grande parte dos portugueses/as, não os considerando capazes e competentes para, se, devidamente, apoiados, educados e formados, se tornarem autónomos e participarem, activamente, no crescimento e desenvolvimento do seu país, foi um PM fraco e tímido, não dando qualquer início, antes travando as reformas estruturais que urgiam, vindo, como bi-presidente, a mostrar e consolidar os seus preconceitos de raiz e impotência, menorizando-se, ainda mais, em fim de mandato.

  4. Pedro Marques says:

    Mas é um ditador. Mesmo que não te tenhas atrevido a dizer.

  5. EfeEsse says:

    Sem dúvida…
    Subscrevo. Foi lhe dado de bandeja o presente envenenado de Bruxelas e pelos vistos, temos de pagar a fatura por…36 anos…

Trackbacks

  1. […] Fonte: A longa noite cavaquista […]

  2. […] coerente, confirmou aquilo que de pior tem em si, que é, afinal, o melhor que pode dar ao mundo. O político que fingiu, durante anos, não ser político deu mais uma lição de vacuidade, o que, afinal, faz sentido na universidade de Verão de Castelo […]

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