Aníbal e as 5ª feiras – Ensaio de compreensão 

Tratemos então de coisas sérias. Brinquei aqui com o futuro livro de Aníbal Cavaco Silva sem o ter lido. E, sejamos esperançosos, pode ali estar uma obra prima a caminho. O que me leva a pensar isto? As pequenas citações que dele ouvi nos telejornais. Aníbal, com a abissal profundidade do seu pensamento, perscruta o espírito daqueles com que partilhou o poder. Mas, objectareis vós, aquilo não é um rosário de banalidades mesquinhas e completamente desinteressantes? À primeira vista assim parece. Mas tentemos olhar mais longe. Que nos diz, Aníbal, em resumo? Que as reuniões com Mário Soares eram sonolentas. Que Sócrates se atrasava muito, falava muito, mas, a dado momento, despertou-lhe a suspeita de que nem sempre dizia era verdade. Passos Coelho, por sua vez, não sabia o que dizer, optava pelo silêncio inicial, mas respondia obedientemente ao que lhe era perguntado. 

Só isto, perguntareis? E não é pouco, digo eu. Vamos por partes. Atentai: Quando Cavaco refere a sonolência em que mergulhava nas reuniões com Mário Soares, isso significa, sem dúvida, que está a pensar em Fernando Pessoa: “Boa é a vida, mas melhor é o vinho. O amor é bom, mas é melhor o sono”. Lá está! Logo aqui, começamos a vislumbrar águas mais profundas.

Quanto às referências aos atrasos de Sócrates, é obviamente em Kafka que – com razão! – Aníbal pensa; pois não disse o grande Franz que disse “O tempo é o teu capital; tens de o saber utilizar. Perder tempo é estragar a vida”? Já quanto a atrasos, Passos Coelho é absolvido; porque – quem o duvida? – Cavaco, amorosamente, pensou com Oscar Wilde: “Se te atrasares demais, posso esperar-te por toda a minha vida”. É toda uma outra relação. Sócrates é visado ainda por, eventualmente, faltar à verdade. Ah, a verdade! “O que é a verdade? – pergunta-se, com Nietzche, Cavaco – Inércia. Uma hipótese que satisfaz o consumo mínimo de força intelectual”. Aníbal compreende Friedrich e topa Sócrates! Por isso, não é demasiado exigente neste ponto. Porque ele leu (!) José Saramago (!!!): “O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias”.

Já quanto aos silêncios de Pedro Coelho, só os maliciosos verão neles pura ignorância. O Silva, esse, vê Shakespeare: “É melhor ser rei do teu silêncio do que escravo das tuas palavras”. E lembra, certamente, Goethe: “Nada mais assustador que a ignorância em acção”. Que a ignorância seja douta. Que a dúvida seja “o princípio da sabedoria”, como ensina Aristóteles. “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos”, declara Orson Welles. Neste passo, aposto, estão os meus ardilosos amigos a lembrar que Passos e Aníbal são o exemplo acabado deste género de pessoas e a considerar se eu não estou com alucinações quando vislumbro estes abismos de sapiência no escrito de Cavaco. Lembremos – já que estamos em maré de mergulhar na mente de grandes pensadores em busca de luz sobre a cavacal obra – que em meditação adrede dada à humanidade, Cavaco garantiu: “nunca me engano e raramente tenho dúvidas”. Também Passos sabia, sem dúvidas para onde ia e o que queria. Não há aqui contradições? Ah, meus amigos, esforço insano é atingir a profundidade dos grandes espíritos! O que a nós, vulgares mortais, parecem contradições – ou parvoíces, para os mais cáusticos – são, nestes homens de maior envergadura e mais alto estado, complexos labirintos a desafiar as mais exigentes hermenêuticas, setas de génio apontadas ao futuro. Se é que, depois desta horda governar, ainda há a certeza de haver um futuro.

Comments

  1. Cristina says:

    Fabuloso anseio agora pela urgente leitura desta ” master prece”. Ontem pensava tratar se de um exercício de vã glória.

  2. Será um best seller onde teremos conhecimento duma autêntica epopeia deste profissional da politica onde teve um enorme sucesso pessoal, vivendo hoje retirado na célebre Aldeia da Coelha rodeado de indefectiveis. Tudo começou como sabemos com a inocente rodagem da sua viatura que o levou à Figueira Foz. Estou ansioso e aguardo a tradução para mandarim.

  3. DCAC says:

    Gostei de ler o seu texto, sobretudo da habilidade de confrontar conceitos.
    Quanto ao visado e sua obra: Quem quer perder tempo com comportamentos medíocres como se de excelentes se tratasse?
    Nem quero saber o que o Sr. escreve ou pensa e não é por uma questão ideológica, mas por uma questão de atitude, comportamento e visão da vida.

  4. Há uma injustiça intrínseca para com o velho presidente: Na quietude da vacuidade é que ele descobriu a sua utilidade. Também a prova de que a reforma liberta grandes potencialidades. O que foi um desperdício, é hoje um ganho. Finalmente e depois de Robinson Crusoe mais um dia da semana reabilitado.

  5. Rui Naldinho says:

    Excelente texto de José Gabriel. Uma série de conceitos que se misturam numa verdadeira caracterização psicológica de Cavaco e do regime democrático, do qual ele tão bem se alimentou, apesar de não se considerar um político profissional, depois de vinte anos de Poder.
    Sim, não nos enganemos, foram vinte anos de Poder, mais as sombras da sua passagem política pelos governos de Sá Carneiro e como líder da Oposição. Tudo somado é mais de metade do nosso regime democrático.
    “O que seria dele, se de facto não fizesse da política um hoby!”
    Não faltarão escribas que de um modo angustiado e fastidioso farão do livro uma obra consistente no plano da teoria política, e da narrativa histórica. Dele tecerão rasgados elogios.
    De uma coisa Cavaco não se livra, com ou sem escribas, óperas e cantores. Diga ele o que disser, escreva ele o que quiser, foi o ter saido pela porta dos fundos do Palácio de Belém, como a maior mediocridade que por ali passou nos últimos quarenta e dois anos de democracia.
    Disso ele não se pode queixar!

  6. ZE LOPES says:

    Estará lá alguma coisa sobre o BPN? E outras quintas, como a do Oliveira e Costa? E outros dias mais salgados? Tou tão ansioso que nem posso!

  7. Anti-pafioso says:

    Que Deus lhe perdoe . Ámen..

  8. E aquela história muito mal contada das várias toneladas de ouro do BdP que “aterraram” numa empresa norte-americana e que se volatizaram. Será que haverá notícia?

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